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“Lê de novo essa história?”
Quantas vezes não ouvimos as crianças nos pedirem pela mesma história? Tem vezes que decoramos metade do livro de tanto ler. E quando você muda o tom de voz, alguma palavra, ou modo de gesticular, isso não passa desapercebido: “não era assim, lembra?”.
Tanto você como as crianças já sabem exatamente como “deve” ser lido aquele livro. As próprias crianças, quando pegam o livro para ler sozinhas (ainda que não tenham seu ciclo de alfabetização completo), já sabem a entonação com que pronunciamos algumas palavras da história e acabam fazendo igualzinho. Já tiveram mães que nos disseram: “Nossa, eu acho que já sei como você lê esta história. Toda vez que meu filho pega o livro e tem uma parte do lobo, ele abre bem os olhos e engrossa a voz, e quando tem um cavalo chegando ele bate as mãos na perna para fazer o som!”.
Parece que para as crianças é importante esta repetição. É como se fosse um ritual, ela já sabe o que vai acontecer e é tão aconchegante poder prever o que está por vir. Tem vezes que a criança tem medo, MUITO medo de uma personagem da história, como um lobo, por exemplo, e mesmo assim ela quer ler inúmeras vezes. Poderíamos pensar que este é um movimento contraditório da criança. Afinal, se tem medo, para que ler de novo sobre o lobo? Não é melhor escolher um outro livro que não fique com medo? Não. É importante se aproximar deste medo, é um medo que dá frio na barriga, elas se colocam no lugar das personagens, passam pelas aflições e, para vencer o medo, precisam passar por isso repetidas vezes. Aliás, elas precisam falar dele de várias maneiras para que possam ir se aproximando cada vez mais. É inevitável. Mas não é só em histórias assustadoras que elas pedem pela repetição, pode ser por alguma personagem que se identifiquem, que tenha alguma situação descrita no livro que já tenham passado, ou estejam passando, e por aí vai… Com a repetição, vão digerindo e re-significando.
A repetição não acontece só com os livros. Os tais rituais também aparecem nas brincadeiras. Já repararam como as crianças gostam de brincar de novo e de novo das mesmas coisas? Depois a brincadeira se esgota e mudam de ritual.
No Ubá temos reparado nisso em nossos registros diários. Nós, educadores, fazemos os registros e, depois de todos os encontros, refletimos sobre as brincadeiras, falas e investigações das crianças. Num espaço que é amplo para se criar, notamos que ainda assim o grupo de crianças sempre quer começar de onde pararam na semana passada. Se no encontro passado terminamos com uma cabana, o grupo de crianças pede para que montemos a cabana para começar, como se fosse um modo de relembrar e dar continuidade para o grupo. Tem uma criança, por exemplo, que toda vez que chega coloca uma cartola vermelha na cabeça e só assim é que pode começar a brincar.
As repetições como rituais são valorizadas pelas crianças. Assim como nós criamos rituais, elas também os criam na cultura de pares. Como nos lembra a sociologia da infância, para as crianças os rituais tranquilizam, ajudam em seu desenvolvimento e momentos de passagens.
Leia também: O desenvolvimento da criatividade no brincar
Por Bruna Mutarelli, formada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo e mestre em Educação pela Universidade do Porto. Foi professora de educação infantil em escolas particulares.
Atualizado em 22 de agosto de 2024