Instituto PENSI – Estudos Clínicos em Pediatria e Saúde Infantil

Para sempre em meu coração

O fim da vida de um paciente

O fim da vida de um paciente

Estou formado há mais de 35 anos, já vi muita coisa em minha profissão e seria impossível contabilizar a quantidade de pacientes que já atendi. Milhares com certeza, e de todo o tipo: bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos. Pessoas de todas as classes sociais e de todas as etnias e só não vou dizer de todas as raças porque raça é uma só: a humana. E como diria Gilberto Gil: “A raça humana é uma semana do trabalho de Deus”.

Respeitando, claro, o conceito de cada um de como surgiu a vida, tenho comigo que somos mesmo obra do “Pai Celestial”. Mas o que tem a ver esse início de texto filosófico / espiritual com um post de saúde bucal?

Vou explicar. Na minha infância, ao perder um ente querido, próximo da família, minha mãe falava uma frase que guardei para a vida: “São os desígnios de Deus”. Ela usava essa expressão para nos confortar e tentar nos explicar o inexplicável. Como poderíamos nos confrontar com a “vontade de Deus”?

Bem, ao começar a trabalhar com crianças, sempre vi nelas um futuro promissor e cuido da saúde bucal dos meus pequenos pensando o quanto posso proporcionar de sorrisos saudáveis para eles quando crescerem. Mas ao trabalhar com “crianças especiais” o futuro não é mais como era antigamente. Minhas expectativas mudaram e talvez tenha compreendido melhor o significado da frase que mamãe dizia.

Como alguns de vocês sabem, trabalhei 27 anos na Associação de Assistência a Criança Deficiente, a AACD, e lá conheci um universo diferente do nosso dia a dia. E longe de ser um universo triste e melancólico, a AACD sempre foi um ambiente sensacional, ao menos no que diz respeito a seus pacientes e funcionários. Conheci crianças e famílias maravilhosas e com elas aprendi o valor de se lutar pela vida, quaisquer que fossem as circunstâncias. Aprendi a amar aquela turma, suas lutas diárias por melhor qualidade de vida. A odontologia nada mais era do que uma ferramenta que ajudava nesse processo. Lá na AACD tive histórias divertidas e deliciosas com aquele pessoal. Mas também tive algumas, infelizmente, com finais tristes.

Como o consultório odontológico era muito frequentado e ficava ao lado de várias terapias, invariavelmente vinha a triste notícia do falecimento de um paciente. E isso marcava muito. Nós, dentistas, com raríssimas exceções, não estamos acostumados a isso, não. Sei lá como os médicos e enfermeiras que trabalham em hospitais convivem com essa rotina, principalmente aqueles que estão em serviços que cuidam de pacientes terminais.

Sabemos que a única certeza que temos, desde o primeiro segundo que nascemos, é que um dia iremos morrer, seja lá em que condições. Contudo, a vida continua e eu continuo a cuidar de “crianças especiais” no meu dia a dia. Há três anos me desliguei da AACD e por isso essa carga de perder pacientes diminuiu, ainda que não tenha terminado.

No início de janeiro, ao retornarmos após as festas de fim de ano, recebemos a notícia de que a Vivi, uma pacientezinha do consultório há mais de cinco anos, estava na UTI devido a complicações cardíacas em um pós-operatório cirúrgico, ela que tinha um problema sério no coração, ela que adorava ir ao consultório. Há duas semanas, com quatorze anos, a Vivi, que era uma moleca, espevitada, esperta demais e que eu brigava toda hora para escovar melhor os dentes, veio a falecer.

Tenho certeza que o céu está mais divertido e com risadas mais alegres, porém, mesmo aceitando e entendendo mais os desígnios de Deus, eu não me acostumo com isso, não. Fique em paz, linda Vivi.

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Atualizado em 2 de setembro de 2024

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