O estudo-piloto é obra de cinco autores, entre eles a médica intensivista e pediatra paliativista do Sabará Hospital Infantil Cintia Tavares Cruz, que representou o grupo na premiação
Os cuidados paliativos pediátricos, uma área ainda pouco difundida e compreendida na sociedade, estão no foco da pesquisa que ficou em primeiro lugar na categoria Bioética do 4º Prêmio de Pesquisa em Saúde Infantil do Instituto PENSI. Uma das conclusões do trabalho é que equipes de saúde demandam mais treinamento para tomar decisões sobre cuidados paliativos. A premiação foi realizada no 6º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil e destacou 12 trabalhos em 4 categorias. O prêmio foi recebido pela dra. Cintia Tavares Cruz, integrante do grupo responsável pela pesquisa. Cintia é médica intensivista e pediatra paliativista do Sabará Hospital Infantil, tutora do curso de pós-graduação em cuidados paliativos pediátricos do Hospital Sírio-Libanês e membro do Comitê de Pediatria da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. “Eles não se restringem a um acompanhamento de final de vida; são uma forma de abordagem que tem um olhar integrado e holístico para o sofrimento em todas as dimensões”, relata ela nesta entrevista. O objetivo do trabalho foi avaliar o espectro de decisões em cuidados de fim de vida e práticas post-mortem em UTIs pediátricas no Brasil, sob a perspectiva da equipe multiprofissional.
“O estudo-piloto feito com o apoio do Instituto PENSI em três hospitais pediátricos brasileiros sobre os cuidados de final de vida e a aplicação dos princípios de cuidados paliativos foi pioneiro no país”, explica o dr. Daniel Garros, médico intensivista do Stollery Children’s Hospital, University of Alberta, no Canadá. Garros é o líder do grupo que montou esse estudo-piloto e que agora articula a realização de uma pesquisa multicêntrica brasileira. “Por meio de entrevistas com médicos, fisioterapeutas e enfermeiros dos três hospitais, o grupo pesquisador levantou dados extremamente significativos sobre o que se passa quando se diagnostica que uma criança está em fase terminal numa UTI, ou seja, quando não há mais esperança de cura, mas sim a necessidade de uma morte digna, cheia de compaixão e humanismo, em meio à grande e intensa tecnologia, que é a característica das UTIs”, explica. Os demais autores do trabalho são os médicos Ian Teixeira e Souza (Hospital Criança Conceição, Porto Alegre), Leonardo Cavadas da Costa Soares (Hospital Pequeno Príncipe, Curitiba) e Grace Caroline van Leeuwen Bichara (Weill Cornell Medicine, Doha, Qatar).
O grupo decidiu investigar o tema partindo do pressuposto de que a maioria das mortes em unidades de terapia intensiva pediátrica (UTIPs) é precedida de decisões sobre limitação e retirada de suporte artificial de vida (SAV), exigindo planejamento de cuidados de fim de vida (CFDV) adequado e bem conduzido, com foco na compaixão e nos cuidados paliativos.
O estudo-piloto utilizou questionário previamente testado, enviado de setembro a novembro de 2019, por e-mail, aos coordenadores de UTIPs de três hospitais do Brasil e repassados aos profissionais da equipe assistencial. Foram obtidas 136 respostas (taxa de 23%). Os respondentes são médicos (35%), enfermeiros (30%), técnicos de enfermagem (21%) e fisioterapeutas (14%). Apenas 12% referiram algum treinamento em CFDV. E 40% nunca tiveram nenhum treinamento. Em relação às práticas de CFDV, 60% dos médicos e 46% dos demais profissionais sentem-se mais seguros em não acrescentar do que em suspender SAV, mesmo cientes do risco de prolongamento do sofrimento. Nenhum dos médicos realizaria extubação paliativa, sendo o medo de questões legais a principal barreira apontada por 36% deles. Entre as conclusões, destaca-se a constatação de que a maioria dos profissionais se sentiu despreparada para o processo de decisão em limitação e retirada de SAV. Observa-se que, mesmo para pacientes terminais, o não escalonamento de terapias de suporte é preferível à retirada do tratamento. E, ainda, que a falta de treinamento adequado das equipes foi marcante, e a extubação paliativa não é prática comum no cenário brasileiro.
“Pudemos verificar que o cuidado do final de vida existe, mas os princípios de cuidados paliativos ainda são pouco praticados nas unidades”, explica o dr. Daniel Garros. “Constatamos que há uma preferência dos médicos em continuar inclusive com a ventilação mecânica, em vez de retirar esse tipo de suporte quando ele perdeu seu valor. Na verdade, poucas vezes se faz a extubação, a retirada do tubo endotraqueal, quando o paciente não tem mais a necessidade de ter esse tubo.”
Qualidade de vida
O dr. Daniel destaca que, embora haja sinais de que muitos centros estejam se movendo na direção de tratar o paciente terminal com maior compaixão e humanismo, o estudo mostra que ainda há um longo caminho a percorrer. Ele adianta que a pesquisa será estendida para mais unidades de tratamento intensivo em todo o Brasil. “Assim teremos a medida adequada do que se está fazendo e onde poderemos melhorar não só a qualidade de morte das crianças, mas também a qualidade de vida enquanto experimentam, nas UTIs, tratamentos agressivos que nem sempre terão o resultado esperado.”
A necessidade de maior atenção ao tema foi reforçada em recente resolução do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, de agosto deste ano, que estabelece diretrizes éticas para o auxílio médico na tomada de decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que enfrentam a fase final da vida. A resolução 355 foi publicada no Diário Oficial da União em 4 de novembro de 2022. O assunto também foi pauta dos meios de comunicação brasileiros no início de dezembro, quando se noticiou que Pelé, de 82 anos, já não respondia ao tratamento quimioterápico que vinha fazendo desde que foi operado de um câncer no intestino — e passou a receber cuidados paliativos exclusivos. Confira a seguir uma breve entrevista com a dra. Cintia Tavares Cruz.
Notícias da Saúde Infantil — Por que esse trabalho é importante para a saúde infantil?
Cintia Tavares Cruz — Para ajudar a promover um cuidado de fim de vida mais humanizado, com um melhor controle de sintomas e mais conforto para o paciente. É claro que ninguém deseja que alguém morra; não é o que se espera ou se deseja, mas infelizmente isso acontece. Na pediatria temos uma grande vantagem, pois o número de óbitos é muito inferior ao que ocorre em adultos. Mas percebemos que, em muitos casos, dentro da UTI pediátrica, o momento da morte pode ser de grande sofrimento, com muitos procedimentos invasivos, com muita terapia de suporte que pode gerar um sofrimento a mais e atenção menor ao controle de sintomas, ao cuidado do paciente e à humanização desse momento mesmo, para que ocorra em paz com a família, com os entes queridos, que essa criança possa estar no colo, sentar… É óbvio, temos de contextualizar. Estamos falando de quadros irreversíveis, dentro de condições de doenças que são graves, avançadas, incuráveis, evoluindo para o processo de morte.
Notícias da Saúde Infantil — E qual seria a abordagem mais adequada?
Cintia Tavares Cruz — É importante, sim, ter esse olhar de tentar oferecer suporte que seja proporcional àquele momento que a criança precisa e que seja voltado para o conforto. Otimizar o manejo de sintomas, dar um conforto através de analgesia e sedação e poder promover um cuidado individualizado, humanizado para cada criança. Isso envolve toda a equipe, não só médica do hospital, mas inclui a equipe de enfermagem, psicologia, fisioterapia… Cada um vai atuar de uma forma que possa promover o cuidado e o melhor conforto. Nossa pesquisa observa as decisões médicas e de equipe com relação ao suporte e considera a importância de promover o momento com a família, criar memórias, de poder fazer um memorial da criança ou ter uma caixinha de memórias ou algo que fique de recordação, da importância de acolher essas famílias, de estar junto e poder aliviar um pouco esse sofrimento. Isso faz parte de uma série de coisas que são importantes e que, às vezes, são deixadas para trás quando se está em uma situação de obstinação terapêutica — que é o nome que se dá quando focamos somente em suporte, tentando promover a manutenção da vida a qualquer custo, dentro de um quadro que já está avançado e é irreversível.
Notícias da Saúde Infantil — O estudo conclui que a maior parte dos profissionais ainda se considera despreparada para tomar essas decisões. O que explica isso?
Cintia Tavares Cruz — Um dos objetivos de nosso paper era ver como as equipes lidam com isso. Porque a terapia intensiva surgiu como uma forma de manter e salvar vidas. Na época, 50 anos atrás, as doenças eram principalmente agudas. O que matava eram as doenças infecciosas, a desnutrição… A terapia intensiva surge do desenvolvimento tecnológico e da medicina para poder reverter essas situações agudas. Como a tecnologia evoluiu muito, hoje temos um número muito maior de crianças com doenças crônicas complexas e que vivem muito bem e com uma qualidade de vida melhor do que se poderia imaginar 50 anos atrás. Mas, mesmo assim, muitas crianças com doenças graves, limitantes e complexas vêm a falecer. Só que a cultura de terapia intensiva ainda é de suporte de vida. De tentar manter a vida a qualquer custo, mesmo dentro de um cenário de terminalidade. Ainda é muito difícil para a equipe médica participar dessa tomada de decisão. É um sofrimento grande. Mesmo assim, é uma cultura que vem mudando, pois percebemos que, em alguns casos, todo esse suporte artificial não está melhorando a qualidade de vida, não está revertendo o quadro, não está promovendo a cura… Na verdade, ele só está mantendo uma vida que já está em processo de morte. Ele prolonga a morte, o que chamamos de “distanásia”, que é prolongar o processo com sofrimento. Nós procuramos promover a ortotanásia, que é o processo de morte natural dentro desses quadros irreversíveis, incuráveis e terminais. Trata-se de permitir um processo natural que é a morte, mas com toda a assistência proporcional, toda assistência possível para que a pessoa tenha um conforto, com todos os cuidados paliativos adequados, em relação ao paciente e em relação à família também. Então essa é a “boa morte”, tanto que o grupo do qual a gente participa tem o nome de Boa Morte. No cenário de uma morte inevitável, nós nos perguntamos como é possível morrer melhor e com menos sofrimento. Dentro disso tudo, existe o sofrimento do médico nesse processo, e a gente relaciona isso à falta de preparo médico na graduação, durante a residência, a lidar com o fim da vida. A gente lida com a cura… Então, o médico sabe salvar vidas, mas não consegue lidar bem com o fim da vida. A gente não tem esse treinamento. Então a gente foca e reforça a importância de ensino de cuidados paliativos na graduação, na residência e para as equipes médicas e multidisciplinares.
Notícias da Saúde Infantil — A carência de treinamento sobre cuidados paliativos, então, não está apenas nas UTIs?
Cintia Tavares Cruz — É algo que precisa ser melhorado em toda a medicina, porque a UTI acaba sendo, nesses casos, o último ambiente no qual o paciente vai passar. A gente não tem que dar conforto só na hora da morte, a gente precisa promover uma boa qualidade de vida, e a boa qualidade de vida ao longo de toda a doença, não só no final da vida. Todos os médicos e equipes multidisciplinares têm que ter esse conceito de cuidados paliativos para saber promover qualidade de vida ao longo da trajetória da doença e fazer um planejamento de cuidados. Todo paciente precisa ter um planejamento de cuidados de acordo com os possíveis cenários. Sempre vamos torcer para que o paciente viva o máximo possível com qualidade e, no melhor dos cenários, seja curado. Mas, nos casos em que isso não está acontecendo, qual o plano B? Qual o plano C? Isso tem que ser discutido com o paciente. A gente precisa traçar esses cenários antes de chegar à UTI, porque é até uma das dificuldades do intensivista. Muitas vezes chegam pacientes com uma doença grave, complexa, em estado avançado, já em terminalidade, que não têm nada discutido e acabamos entrando com terapias que podem não trazer grande benefício e ainda gerar mais sofrimento. É muito importante todo profissional ter esse conceito, pelo menos para pedir ajuda de uma equipe nos casos em que achar necessário, para poder conduzir em conjunto, porque o objetivo é a qualidade de vida, viver bem… Não só morrer bem, mas viver bem.
Por Rede Galápagos
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