Como contaminantes atmosféricos afetam o desenvolvimento pulmonar e cognitivo das crianças. Na imagem, Marilyn Urrutia-Pereira durante o 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil. Foto: Rudah Poran/Galápagos
No centro das discussões sobre o futuro da saúde infantil, uma ameaça silenciosa compromete o desenvolvimento e o bem-estar das crianças brasileiras: a poluição do ar. No recente 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil, especialistas se reuniram para debater os impactos dessa crise invisível e as estratégias para mitigá-la.
Entre as vozes mais atuantes nesse campo está Marilyn Urrutia-Pereira, referência em saúde ambiental pediátrica e coordenadora do Núcleo de Pesquisas Ambiente e Educação em Saúde (Nupaes) da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Além de liderar o Programa Infantil de Prevenção de Asma (Pipa), Urrutia-Pereira é coautora do capítulo sobre saúde ambiental pediátrica no Tratado de Pediatria 2022 da Sociedade Brasileira de Pediatria e membro de comitês da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da World Allergy Organization. Sua trajetória é dedicada a entender como fatores ambientais, como a poluição do ar e a exposição a produtos químicos, influenciam no desenvolvimento infantil, especialmente durante as chamadas “janelas de suscetibilidade”, períodos em que o organismo da criança é mais vulnerável a agressões externas.
Uma epidemia silenciosa e seus vilões invisíveis
A poluição do ar é um fator crítico para a saúde respiratória infantil. Seus efeitos já se refletem no aumento expressivo de casos de asma, bronquite e outras doenças respiratórias. Segundo a OMS, fatores ambientais foram responsáveis por 3,5 milhões de mortes infantis em um único ano, um número alarmante que revela a gravidade do problema.
Entre os agentes mais nocivos estão as partículas finas (PM2.5), o dióxido de nitrogênio (NO2) e o ozônio (O3), substâncias liberadas por veículos, indústrias, queimadas e até atividades domésticas. A exposição prolongada a esses poluentes compromete o desenvolvimento pulmonar e aumenta o risco de doenças cardiovasculares, déficit cognitivo e impactos na saúde mental. Durante sua apresentação, Urrutia-Pereira destacou dados alarmantes sobre o impacto da poluição na infância. Um dos estudos citados aponta que, em 2021, a exposição à contaminação foi relacionada a 700 mil óbitos de crianças menores de cinco anos — o segundo maior fator de morte infantil após a desnutrição.
Além da poluição atmosférica, outros contaminantes ameaçam a saúde infantil. Substâncias como bisfenóis e ftalatos, presentes em plásticos e embalagens, atuam como desreguladores endócrinos e podem favorecer o desenvolvimento de obesidade e distúrbios metabólicos. Pesticidas, usados em áreas tanto rurais quanto urbanas, representam um risco significativo. Durante campanhas de combate à dengue, por exemplo, produtos químicos pulverizados podem atingir bebês e crianças pequenas sem que os pais percebam o perigo.
Os riscos ambientais não se restringem às ruas e cidades — o próprio ambiente doméstico pode ser uma importante fonte de exposição a agentes prejudiciais. Um exemplo recorrente, segundo Urrutia-Pereira, é o uso do fogão a lenha em residências, prática ainda comum em várias regiões brasileiras. A médica relata que costuma questionar os pacientes se estão cientes de que essa forma de cocção pode gerar uma alta concentração de poluentes internos, contribuindo para doenças respiratórias graves, além de estar associada a catarata, acidente vascular cerebral e problemas cardíacos. “Muitas vezes, as pessoas simplesmente não sabem dos riscos que estão correndo”, alerta.
Outros produtos de uso comum, como detergentes para lava-louças, podem conter álcool etoxilado, um componente capaz de comprometer a barreira epitelial intestinal e aumentar o risco de doenças inflamatórias, como a esofagite eosinofílica. Já o formaldeído, presente em móveis novos e materiais de construção, pode desencadear reações alérgicas e problemas respiratórios em crianças e gestantes. Para completar o quadro, a presença crescente de microplásticos, lixo eletrônico e a escassez de áreas verdes agravam ainda mais o impacto ambiental na infância.
Anamnese ambiental e a urgência de ações efetivas
Diante desse cenário, como pediatras e profissionais de saúde podem atuar para reduzir os impactos da poluição na infância? Urrutia-Pereira defende a anamnese ambiental como uma ferramenta fundamental para identificar riscos e adotar medidas preventivas. Ela ressalta que a análise do ambiente em que a família vive deve ser incorporada à rotina clínica desde a primeira consulta, envolvendo toda a equipe de saúde. “Como essa análise é feita no primeiro atendimento, os pais dizem tudo o que está errado, porque estão com a criança doente. Então, contam a verdade”, explica.
Essa abordagem permite identificar fatores como a qualidade da água consumida, a poluição intra e extra-domiciliar e a presença de agentes tóxicos no ambiente doméstico e até a exposição ao radônio, um gás inodoro que pode infiltrar-se nas residências e aumentar o risco de câncer de pulmão. Ela destacou que o CDC considera importante testar a presença de radônio, principalmente em escolas e residências, devido aos riscos associados à exposição.
Para enfrentar os riscos ambientais na infância, Urrutia-Pereira reforça a necessidade de ações articuladas entre profissionais de saúde, governos e sociedade. Durante o congresso, outras iniciativas foram também ressaltadas — como a telessaúde, apresentada por Adriana Mallet (SAS Brasil), que demonstrou como o uso da telemedicina pode reduzir deslocamentos e contribuir para a diminuição do impacto ambiental dos serviços de saúde.
O enfrentamento da poluição do ar e de outros riscos ambientais na infância exige ação coordenada entre governos, profissionais de saúde, famílias e a sociedade como um todo. Para Urrutia-Pereira, a mudança começa com a conscientização e a busca por práticas mais seguras no dia a dia. Ela reforçou que a mudança está ao nosso alcance e que os pediatras têm um papel essencial para garantir um futuro mais saudável às novas gerações. A construção de um ambiente mais saudável depende tanto de grandes políticas públicas quanto de escolhas individuais e coletivas que garantam um ar mais puro e um futuro mais seguro para as novas gerações.
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