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Nenhum super-herói nasce pronto. A gente passa por todo um processo até chegar a ser aquele que vai enfrentar os monstros que aparecem no dia a dia. Do uniforme até a escolha do melhor superpoder, todos os dias, vamos aprendendo quais são as características necessárias para se autodenominar herói, quem dirá “super”. Pois é, e foi em um desses dias assim, comuns da função, que aprendi bastante sobre a “superforça”.
Foi o dia em que fomos visitar nossa amiga Cássia, que sempre nos recebia de um jeito diferente. Tinha dias que estava mal humorada (e quem nunca, não é mesmo?), e outros em que podíamos contar com o seu sorriso e o seu gingado. Afinal, rebolar e dançar era a nossa maior diversão juntos. Toda vez que a mamãe cantava uma música, a Cássia dançava sentadinha na cama. Nunca vou me esquecer dos momentos felizes dela. Meu coração se enchia de alegria ao vê-la feliz nas situações mais adversas. E não foram poucas.
A experiência mais marcante foi o dia em que Cássia estava com muitas dores nas pernas, no entanto precisava, por prescrição médica, caminhar um pouco. A enfermeira, muito delicadamente, segurava as duas mãozinhas de Cássia e a conduzia pelos corredores enquanto ela chorava de dor. Neste dia, eu estava acompanhado da Chapeuzinho Vermelho e sabíamos que tínhamos que nos manter firmes para tornar o passeio da Cássia menos torturante.
Lembro que no início do trajeto comecei conversando, explicando que era necessário andar um pouquinho e que logo estaríamos de volta no quarto. Ela me olhava, mas não continha o choro. Chapeuzinho Vermelho também conversava com ela e apontava os desenhos de animais nas paredes do hospital, estávamos juntos naquele momento difícil. Queria ter o poder de tirar toda aquela dor dela, mas os super-heróis não tem todos os poderes do mundo e eu só tenho a minha superforça (podem conferir os músculos).
Aos poucos, a minha super força começou a se abalar e eu me vi numa situação nova: como lidar com aquela experiência tão explícita de dor? Ela chorava bastante, pedia para voltar e eu precisava apoiá-la de maneira mais eficiente. Me perguntava: será que estou ajudando em alguma coisa? Lembrei que Cássia adorava os Backyardigans e eu sabia a música, pois já havíamos cantado para ela outras vezes. Puxei a musiquinha, a Chapeuzinho me acompanhou e a reação de Cássia respondeu minha pergunta.
Quando começamos, ela não percebeu rápido, mas depois de uns dois passos reconheceu a música e subitamente parou de chorar. Deu uma piscadinha para terminar as últimas lagriminhas que já estavam prontas pra descer e deixou a dor pra lá por uns cinco segundos. Não olhou pra mim, ficou com o olhar perdido, sem chorar nem gritar, ameaçou um quase sorriso e balançou um pouco o bumbum: um ensaio do passo da dancinha que fazia quando a mamãe cantava. Acho que se lembrou dos momentos mais felizes ou de distração, quando a música do desenho estava presente.
Talvez ninguém ainda tivesse tentado aquela música, pois a reação foi súbita e muito rápida, coisa de três passos da caminhada. Eu quase não acreditei. Funcionou! Ela sabe que eu tô aqui, ela sabe o que tá acontecendo, talvez tenha entendido a conversa no início. Depois dessa pequena pausa, voltou a chorar. Ela precisava. Talvez para aguentar a caminhada, que era tão necessária, fosse preciso fazê-la chorando, expressando a dor de alguma maneira.
A música não adiantou mais. Mas preferi respeitar seu choro, já tinha a certeza que ela estava sendo afetada pela nossa presença. Continuamos a caminhada em silêncio, apenas enfeitando o caminho com muitas bolhinhas de sabão… Várias… Inúmeras.
Queria fazer uma floresta de bolhas, não para calar o seu choro ou apagar o sofrimento, mas se ela tivesse que lembrar desse dia, que o foco fosse a beleza da chuva de sabão.
Foi forte. Cada passo que a Cássia dava doía no meu coração, o caminho nunca foi tão longo nos corredores, me segurei firme na base, estava ali aprendendo a ser um melhor super-herói, em uma lição repentina num dia comum.
Respeitar a Cássia no seu momento de dor foi importante para todos. Ela foi até o fim da missão e, ao entrarmos no quarto, ela queria descansar. Quem estava com ela nesse dia era o pai (e não a mãe, como de costume). Ela deitou e não interagiu. Queria descansar. Deixamos presentinhos e promessas de retorno. Queria ver a Cássia melhorar. Mas não deu. Alguns meses depois, infelizmente, ela nos deixou.
A última vez que a vi ela estava dormindo como um anjinho e só deixamos presentes com a mamãe.
Nunca vou me esquecer da caminhada da Cássia naquele dia. Quando tiver que caminhar com tanta dor, vou usar a força que ela me deu e prestar atenção nas chuvas de bolhas de sabão que podem estar rolando ao redor.
Por Sr. Incrível (Bruno Sperança)
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Atualizado em 13 de setembro de 2024