Responsável pela formação de futuros médicos, a pró-reitora de graduação do Centro Universitário FMABC e pesquisadora da Unifesp Roseli Sarni participa do 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil (moderando a mesa “Os grandes nomes da nutrição pediátrica”)
No Centro Universitário FMABC, os alunos do 2º ano do curso de medicina e os residentes de pediatria visitam o laboratório para um treinamento prático junto com os alunos do curso de nutrição. “Fazemos isso desde a década de 1990, quando eu era professora auxiliar. Ali eles preparam nutrição complementar para crianças, manipulam e reconhecem alimentos para saber orientar os pacientes a uma dieta mais diversa”, explica a dra. Roseli Sarni, que, desde 2014, é professora titular da disciplina de clínica pediátrica e, desde 2019, pró-reitora de graduação na FMABC. Além disso, é pesquisadora associada e médica da Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“O desafio para todos os cursos de medicina é melhorar a formação durante os seis anos da graduação, pois a procura por residências está caindo nas faculdades públicas e nas privadas. Este ano, 40% dos alunos não procuraram concorrer a residências médicas, um dado alarmante”, constata a pediatra, que colaborou e colabora de diversas formas para o aprimoramento da nutrologia pediátrica no país.
Com histórico relevante no enfrentamento da desnutrição, Roseli conheceu o dr. Mauro Fisberg, do CENDA/PENSI, na Unifesp. “Ele foi meu professor na disciplina de nutrição e metabolismo, quando coordenava os laboratórios na Unifesp. Continua inovador como pesquisador na área de transtornos alimentares e tem reconhecimento internacional. É uma inspiração para mim”, conta ela, que orienta dois programas de pós-graduação na linha de pesquisa sobre metabolismo e nutrição (nas ciências da saúde do Centro Universitário FMABC e na pediatria e ciências aplicadas à pediatria, na Unifesp).
“O trabalho com nutrição, como não tem resultados imediatos, exige persistência e resiliência”, observa Roseli, que pelo lado pessoal teve “lições de vida” na especialidade: seu filho ficou bastante desnutrido até ser operado de uma cardiopatia congênita grave na época em que não havia UTI pediátrica no Hospital Sírio-Libanês e, mais recentemente, um neto foi diagnosticado com alergia alimentar. “Tive oportunidade de ampliar minha compreensão sobre a doença e me envolver com ela, o que ajudou a atender com mais humanização e empatia essas famílias, que são vítimas, e não responsáveis por essa condição. Essas experiências servem para termos um olhar mais humanizado.” Na entrevista a seguir, a dra. Roseli enfoca a situação de insegurança alimentar no Brasil, as batalhas no ensino, pesquisa e extensão em nutrição e o orgulho pelas sementes que plantou nessa área.
Notícias da Saúde Infantil — Quais são as alergias alimentares que mais dão trabalho aos pediatras e desafiam os nutrologistas atualmente? Quais foram suas principais colaborações nessa área?
Roseli Sarni — As alergias são um desafio, pois existem poucos serviços específicos no atendimento da alergia alimentar, o que dificulta a formação do profissional na área. Existe um desconhecimento grande, por isso nós nos desafiamos a produzir livros e artigos científicos na Sociedade Brasileira de Pediatria e lançamos o Consenso Brasileiro sobre Alergia Alimentar, em 2018. A alergia é uma reação adversa a um alimento: os mais frequentes nas crianças são o leite de vaca e o ovo. Como o leite é fonte de proteína e de cálcio, se o pediatra não souber quais são as substituições apropriadas, a mãe troca por suco ou chá, o que acaba sendo um risco nutricional. Fiz parte de uma ONG, o Instituto Girassol, que tinha um evento científico anual, distribuía materiais gratuitos e brigou pelos programas de gratuidade de fórmulas substitutas do leite para bebês alérgicos em vários estados, nos moldes do de São Paulo. Também elaboramos materiais para as famílias, falando do desafio que inclui leitura de rótulos de alimentos, a rotina da escola e das festinhas. Publicamos coleções de receitas para alérgicos até hoje disponíveis online. O livro Alimentação saudável e alergia alimentar, do qual participei com outros autores, teve um olhar muito bacana, pois prega uma alimentação saudável que serve no contexto de qualquer doença. Acho que foi uma ótima forma de a universidade sair de sua zona de conforto e cumprir a responsabilidade de apoiar o profissional de saúde, a mãe, a escola e os restaurantes para encarar a alergia alimentar de uma forma mais segura.
Notícias da Saúde Infantil — Existem novidades que a universidade estuda nessa área?
Roseli Sarni — Chama a atenção que hoje as alergias alimentares são mais persistentes e duradouras. Antes eram transitórias, se resolviam até os cinco anos de idade. A causa disso não sabemos ao certo, nos parece multifatorial. Mas o artigo de uma aluna minha de doutorado investigou o consumo de alimentos ultraprocessados em crianças com alergia alimentar e verificou que um terço delas ainda consome alimentos desse tipo. E a presença de aditivos e corantes nesses produtos industrializados muda a sinalização do sistema imunológico como um todo. Então pode ser uma explicação não só da persistência e do aumento da gravidade das alergias, mas do maior risco de desenvolver outras doenças crônicas, como a obesidade.
Notícias da Saúde Infantil — Na área de insegurança alimentar quais são atualmente as questões mais preocupantes?
Roseli Sarni — Esse é um tema inesgotável que foi escancarado durante a pandemia. A insegurança alimentar, stricto sensu, é a fome, mas existem outras nuances preocupantes. A principal delas é a falta de qualidade na alimentação. Em 2022, tínhamos 65 milhões de pessoas passando fome no Brasil, número que se reduziu para 45 milhões em 2024, de acordo com a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. No entanto, mesmo com a redução da fome, a qualidade da alimentação da população tem piorado. Observa-se um aumento no consumo de ultraprocessados, que muitas vezes não são sequer considerados alimentos, mas sim misturas de aditivos, corantes e estabilizantes. Anteriormente, a preocupação central era quanto se consumia de gorduras, açúcares e carboidratos; hoje, sabemos que a qualidade da comida explica mais sobre a trajetória de doenças do que a quantidade consumida. Foram identificadas 32 doenças relacionadas ao consumo de ultraprocessados, incluindo condições já conhecidas como alergias e problemas cardiovasculares. Na lista também aparecem depressão, transtornos mentais e até Alzheimer. Diante do aumento das doenças crônicas, essa questão precisa ser enfrentada seriamente.
Notícias da Saúde Infantil — E quais seriam as maneiras de enfrentar o problema?
Roseli Sarni — Uma delas é cobrar dos setores envolvidos na produção dos alimentos. Em 2020, participei de um grupo técnico da Anvisa que definiu a obrigatoriedade da rotulagem nutricional frontal dos alimentos, para informar o alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio, em uma área de fácil visualização na embalagem. A resolução foi publicada em 2020, mas só entrou em vigor em 2024, então veja, são anos que a saúde pública está sofrendo esses danos. Outra maneira é tentar reduzir o preço dos alimentos naturais, que estão mais caros do que os industrializados. O governo atual avançou na obrigatoriedade de itens in natura nas cestas básicas, apoiando-se na agricultura local, mas esbarra em dificuldades de logística. A questão acaba fazendo com que a gente desenvolva um olhar sensível. Na formação dos residentes, por exemplo, orientamos a não culpabilizar as famílias que não podem comprar frutas e legumes por pesarem no orçamento. Teriam que ser aprimoradas políticas públicas para proporcionar a quem mais precisa esse acesso aos alimentos saudáveis.
Notícias da Saúde Infantil — Existe também uma preocupação com o baixo peso ou a obesidade de crianças. Qual seria o papel dos pediatras e de campanhas de nutrição para combater essas questões de saúde pública?
Roseli Sarni — É muito importante, mas a realidade é que a atenção básica à criança não está na mão dos pediatras, pois quem atende nos programas de saúde da família são profissionais recém-formados com pouco preparo para o imenso desafio. O Brasil tem hoje 48 mil pediatras com residência médica; isso dá 92 médicos pediatras por 100 mil pessoas de 0 a 18 anos, o que não é suficiente, principalmente por termos uma distribuição desigual: há menos profissionais capacitados nas regiões Norte e Nordeste. Sabemos que, sem cuidados de um pediatra qualificado, a desnutrição, a obesidade, o crescimento acelerado ou a baixa estatura podem marcar a criança para a vida inteira. São vários os desafios que ameaçam a alimentação saudável: os profissionais despreparados, a publicidade burlando a legislação de comercialização de alimentos voltados para o público infantil, mulheres contratadas por empresas que se infiltram em grupos de mães para sugerir fórmulas para que elas descansem do aleitamento materno, os benefícios que as indústrias de alimentos oferecem aos pediatras. Basta comparar o tamanho dos estandes sobre amamentação e os vistosos com fórmulas maravilhosas nos congressos para perceber esses mecanismos de sedução. Existe toda uma indústria que trabalha contra os interesses da alimentação saudável, e isso tem consequências nocivas, já que o ideal seria a prevenção das doenças relacionadas à má nutrição. Depois que ela se instala, a criança cresce e desenvolve doenças crônicas e aí se perde a janela de oportunidade, o que impacta a saúde pública como um todo.
Notícias da Saúde Infantil — De que maneira enxerga o desenvolvimento da nutrologia no Brasil?
Roseli Sarni — Eu me formei em 1981, logo em seguida fiz minha residência em pediatria e comecei a minha formação em nutrologia. Nessa década a grande questão era a desnutrição. A convite do prof. Nóbrega, da Unifesp, montamos uma Unidade de Atendimento de Desnutridos no Hospital Pérola Byington, que virou uma referência no tratamento de crianças desnutridas. O grande desafio eram a sobrevivência e a redução das sequelas em quem passava por isso. Depois saímos do espectro da desnutrição, e nossa meta era explicar aos profissionais de saúde que a nutrição era verdadeiramente uma ciência e impactava um número maior de crianças do que outros tipos de ciência. No final dos anos 1990, eu estava à frente do Departamento de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria e montamos o Curso de Aprimoramento em Nutrologia Pediátrica (Canp), com objetivo de trabalhar as evidências científicas de forma prática e capacitar profissionais de todo o Brasil. E pudemos viajar pelo país plantando essas sementes. Várias universidades compraram o curso como estratégia e muitos profissionais se aprofundaram na área nessa época.
Notícias da Saúde Infantil — De alguma das viagens você lembra com mais carinho?
Roseli Sarni — A Região Norte foi um grande desafio e na Universidade Estadual do Amazonas conheci a dra. Silvana Benzecry. Ela me levou para ver desnutridos graves na unidade de saúde e disse que queria montar um curso adaptado para o pessoal que atende os ribeirinhos. Na época estavam levando alimentos industrializados via barcos e havia contaminação dos rios por mercúrio de garimpo, que já impactava as populações indígenas. Depois de conhecer melhor os hábitos alimentares lá, construímos um material adaptado que nós capitaneamos juntas, e eu aprendi muito. A Silvana trabalha nessa área desde a década de 1990 e hoje é coordenadora no Ministério da Saúde, atendendo a questão da desnutrição yanomâmi. Contribuindo com os programas governamentais é que a gente colabora com o país. Abraço esse compromisso da extensão universitária, de agir extramuros, verificando onde está o problema nutricional e tentando resolver.
Notícias da Saúde Infantil — Quais foram as principais dificuldades e os principais desafios enfrentados em sua carreira acadêmica e profissional, e de que modo o fato de ser mulher foi um complicador?
Roseli Sarni — Sempre, diante dessa pergunta, vem aquele dito “a gente precisa matar um leão a cada dia”. Lembro que 77% dos pediatras no Brasil são mulheres, mas o desafio não é diferente na medicina ou em outras profissões. Falta muito em termos salariais para a equiparação com o homem, tem que conciliar o ser mãe, o ser avó. Nas gerações atuais, a mulher está questionando sua realidade e não é tão servil quanto a minha geração, mas ainda enfrenta uma rotina desigual no trabalho em casa e nos cuidados da família. Para o exercício da pediatria, em especial, a maternidade e depois a chegada dos netos nos amadurecem e contribuem demais, pois presenciamos as situações do dia a dia com as crianças.
Notícias da Saúde Infantil — Como pró-reitora de graduação, o que percebe que está faltando aos médicos de hoje, o que é importante reforçar na formação dos futuros pediatras?
Roseli Sarni — Acredito que seja um olhar profissional mais cuidadoso, cauteloso, sem tanto julgamento. A empatia está em falta na nossa medicina. É preciso fazer o médico sair do lugar de achar que sabe tudo, que não precisa do enfermeiro, do nutricionista. No Centro Universitário FMABC estimulamos atividades integradas entre os estudantes de todos os cursos da área de saúde. Também temos investido muito na formação de professores, em discussões que não abordam só metodologia de ensino e uso de inteligência artificial, mas reforçam a humanização. Melhoramos o olhar humanizado para estudantes com TEA e baixa visão que chegaram ao curso superior. Todas essas sementes vão trabalhando um professor melhor e um aluno melhor. O professor, afinal, é um modelo de profissional e tem sempre algum em quem nos espelhamos.
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Por Rede Galápagos
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