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“Já sei pra onde vou, eu vou sentir o calor da rua.”
Francisco el Hombre
Quando reformamos a casa onde hoje é a Ubá optamos por um muro cheio de buracos e um portão vazado. A ideia era que as crianças pudessem estar de alguma forma conectadas ao que acontece na rua, no tempo em que estivessem por lá. Certo dia, uma delas escalou o muro até certa altura, como algumas costumam fazer. Eu estava ao lado, prezando por sua segurança. Ela deu um passo a mais, ficando um tanto mais alta, e eu pedi que descesse para uma altura mais segura. Foi então que, com os olhos já mergulhados dentro de um dos buracos do muro, ela me disse: “Eu quero ver a cidade”. Silenciei.
Na Ubá, as crianças pedem nos vizinhos ingredientes que faltaram para uma receita e convidam eles para comer o bolo depois de pronto. Para a Penha, vizinha de frente, pedimos que asse o bolo quando o gás acaba bem na hora H. Nas próximas semanas, sairemos a pé com os grupos até a Praça das Corujas, para brincar. Quando o carteiro passa, elas o cumprimentam e gostam de abrir a caixa de correio para ver se tem correspondência, além de colocar desenhos ali também para entregarem às famílias quando chegam para buscar.
Em dezembro, escrevi o texto “De presente, a presença”, também aqui no blog. Na ocasião, escrevi um pouco sobre trocarmos presentes-objeto por presentes-experiência. Tive um retorno muito bacana de uma amiga, que conversa com o tema deste texto: “Confesso que é uma adaptação para eles, sem dúvida, mas pra mim também. Não só pela pré-disposição em dar matérias e ter uma segurança imediata da concretude do que de nós fica com eles, mas porque exige muita presença mesmo! Pra pequena (a sobrinha), presenteamos “um dia na cidade”. Pra mim, na verdade foi “um dia na cidade e toda disposição do planeta” para explicar por quê isso, por quê aquilo a cada passinho que ela dava. No final do dia ela também escreveu no diário: “hoje andamos de ônibus, foi o melhor dia da minha vida”. Dei uma choradinha hehehe (…) Tem que ter disposição, mas sinto que é bem transformador da relação que estabeleci com eles”.
É urgente estarmos mais presentes nos espaços públicos. Não somente com as crianças, mas com nós mesmos, com os amigos, com a família. Fica o convite para experimentarem uma manhã na Paulista, um domingo no parque com direito a piquenique, um passeio na praça perto de casa, uma volta pelas ruas do bairro para procurar prováveis árvores frutíferas, um passeio de bicicleta no Minhocão, um pedido de ingredientes nos vizinhos. O tempo é também experimentado de outra forma nessas vivências, sobram horas e a sensação é de um respiro de calma nessa correria da cidade grande (mas com potencial para ser experimentada pelas pequenices).
Relacionar-se com a cidade é também relacionar-se com o humano da gente, e dos outros.
Por Lilia Standerski, formada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo. Trabalhou muitos anos como professora de Educação Infantil e cursou Pós-Graduação em Educação Lúdica no ISE Vera Cruz. Em agosto de 2015 abriu, junto com uma colega, a Casa Ubá (www.casauba.com.br), um lugar que desenvolve tempo e espaço para as crianças ampliarem a capacidade de compreender a si mesmas e aos outros por meio de brincadeiras e investigações que surgem nos encontros.
Atualizado em 21 de outubro de 2024