Instituto PENSI – Estudos Clínicos em Pediatria e Saúde Infantil

“O exercício da hebiatria não se resume a instruir o adolescente quando ele pede uma dica de contracepção”

Pioneira da hebiatria no Brasil, a pediatra Maria Ignez Saito foi médica da Unidade de Adolescentes do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas. Seu assunto principal, a puberdade e a adolescência, será tema de palestra no 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil.

 

Maria Ignez Saito se formou em medicina na Escola Paulista de Medicina, mas fez a sua carreira toda na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Antes de atuar na Unidade de Adolescentes do Instituto da Criança do HC da FMUSP, o primeiro serviço dessa área no Brasil, instituído em 1974, ela atendeu no Hospital Santa Marcelina, em Itaquera, no início dos anos 1970.

“Chegavam meninos tão desnutridos que os outros chamavam de passadores. Não porque traficavam drogas, como se pode pensar, mas sim porque eram tão mirrados que passavam por frestas de vitrôs e abriam a casa por dentro para a turma roubar”, relata ela. Na época, os médicos conseguiram vacinar os adolescentes e arrumar empregos na região, que tinha muitos sítios e chácaras; eles ajudavam em colheitas e recebiam alimentos em troca. “Foi em Itaquera que foi despertado o meu interesse por essa faixa etária.”

Em seguida, a pediatra passou em concurso e foi contratada pelo Hospital das Clínicas, atendendo a partir de 1977 na Unidade de Adolescentes, então chefiada pela profa. Anita Colli. No mesmo ano iniciou a atividade docente e de pesquisa na FMUSP. De 1996 até 2013, coordenou a disciplina Medicina de adolescentes: aspectos atuais e metodologias de pesquisa da pós-graduação senso estrito do Departamento de Pediatria, ou seja, foi responsável pela formação de centenas de hebiatras e, em especial, formou todos da equipe que hoje atua na USP. A conversa a seguir contém muito da história dessa especialidade no Brasil e as principais questões que preocupam quem atua na área.

Notícias da Saúde Infantil — Como foi o desenvolvimento da hebiatria no país?

Maria Ignez Saito — O primeiro serviço formalizado de atendimento à adolescência no país foi a Unidade de Adolescentes do Instituto da Criança, dentro do Hospital das Clínicas da USP, logo em seguida veio o Nesa, o Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, da UERJ. Formamos uma dupla importante, divulgando essa área e tentando atingir o Ministério da Saúde com propostas que saíssem das universidades e atingissem o SUS, ou seja, chegassem aos postos de saúde. Com a mesma bandeira, depois se juntou a nós a Santa Casa. Desse esforço se instalou o primeiro Programa de Saúde do Adolescente da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, em 1987. E depois, em 1989, o Ministério da Saúde criou o Programa Saúde do Adolescente (Prosad), que veio para integrar os serviços do Brasil para a faixa etária de 10 anos até um dia antes de completar 20 anos. Na prática, as coisas começavam pelas capitais dos estados e depois os mesmos serviços chegavam ao interior. Em 1993, a Unidade de Adolescentes do Instituto da Criança se tornou um centro de referência da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e de 1993 a 1995 aconteceram três cursos administrados por nós, em conjunto com o Ministério da Saúde, que iniciaram nessa área profissionais de todo o Brasil e dos países fronteiriços.

Notícias da Saúde Infantil — Em quais aspectos um hebiatra tem uma formação diferenciada?

Maria Ignez Saito — A medicina de adolescentes tem um tripé, a formação do indivíduo relacionada a aspectos éticos, legais e afetivos. Deixamos de usar termos como aborrecente e olhamos para ele como cidadão com maior possibilidade de mudar o amanhã de forma positiva. Então se os adolescentes não forem cuidados hoje e faltar o presente, que é responsabilidade dos adultos, isso vai impactar o futuro de todos. Muitas questões tratam de sexualidade, pois nessa fase acontecem decisões inconsequentes que afetam a vida adulta e a das próximas gerações, como gravidez, DSTs, HPV e HIV. O exercício da hebiatria não se resume a instruir o adolescente quando ele pede uma dica de contracepção, mas envolve afeto, respeito ao protagonismo e orientação básica de cidadania. A partir do final dos anos 1980, a medicina de adolescentes começou a ser prática obrigatória nas residências médicas de pediatria. Mas até 1998 não existia certificação na área, que conseguimos instituir e fomos os primeiros a receber (o título de habilitação em medicina de adolescentes foi dado a todos os médicos que já atuavam, como os do Instituto da Criança, do Nesa-RJ, da Santa Casa e outros).

Notícias da Saúde Infantil — Como a doutora escreveu vários livros sobre a puberdade e a adolescência, como essa fase da vida tem se modificado ao longo das últimas décadas?

Maria Ignez Saito — A adolescência é psicossocial, a puberdade é a parte física. Houve uma aceleração secular de crescimento, em consequência de melhores condições de vida, como vacinas, alimentos, acesso a serviços de saúde. Isso levou ao ganho de estatura e também à puberdade antecipada. Cabe lidar com estímulos sexuais biológicos dentro de uma sociedade que já mudou muito — hoje, além de questões como a permissividade e o abandono, é preciso lidar com a vida virtual. Ninguém está desobrigado de criar os filhos dentro de valores adequados, independentemente da época, pois eu lembro que risco não tem época. Na prática médica, o adolescente conta que está tendo atividade sexual sem que precise revelar aos pais, e isso passa por questões éticas e até valores religiosos do próprio profissional. Essas são questões importantes que atravessam o tempo.

Notícias da Saúde Infantil — Questões como o respeito à privacidade e o direito dos adolescentes?

Maria Ignez Saito — Sim. Quando identificamos o uso de drogas, por exemplo, é uma contravenção e os pais precisam saber por que existe risco de morte. É muito diferente do exercício da sexualidade, que é um direito. Em 2002, organizamos um fórum sobre adolescência, anticoncepção, sexualidade e ética, e já havia discussões sendo travadas por comissões de ética e conselhos de medicina para determinar o que poderia ser feito em termos de anticoncepção para quem tinha mais de 12 anos de idade. Depois, fizemos um fórum a favor de contraceptivos de emergência (em 2005) e obtivemos uma resolução do Conselho Federal de Medicina para isso, que garante que eles sejam fornecidos pelo SUS. Na questão de sigilo, ele era garantido a partir dos 12 anos, pois é considerada a idade do discernimento, tanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como por lei. Por esse motivo também, toda atividade sexual abaixo dos 12 anos era considerada abuso. Até que o artigo 217-A do Código Penal (incluído pela Lei nº 12.015, de 2009), que versa sobre estupro de vunerável, complicou muito a vida dos hebiatras, pois considera abuso toda relação até os 14 anos, mesmo que seja consentida.

Notícias da Saúde Infantil — Como assim, professora Maria Ignez?

Maria Ignez Saito — Meninos de 16 a 18 anos muitas vezes namoram meninas de 13, que já têm corpo e cabeça completos e estão inseridas em uma sociedade que estimula a relação sexual. Então se para a lei tudo é abuso, precisa encaminhar para o conselho tutelar, ou seja, isso afasta as pessoas dos serviços de saúde. Antes, a questão do consentimento era avaliada pelos médicos e depois se passou a culpabilizar o rapaz. O pior da lei é penalizar um adolescente por ter relação com a namorada, e, dependendo de quem julgar o caso, se tiver mais de 18 anos vai para a prisão com antecedente de estupro. Essa luta persiste até hoje e segue debatida nos congressos de pediatria, onde a pergunta é: manda ou não para o conselho tutelar abaixo dos 14 anos? Não estamos questionando a Justiça, estamos tentando uma aproximação para os adolescentes não perderem suas conquistas históricas, uma delas o sigilo garantido a partir dos 12 anos e ser prerrogativa da saúde avaliar se o caso tinha consentimento ou se foi abuso.

Notícias da Saúde Infantil — Em relação a políticas públicas, houve avanços na área de saúde do adolescente?

Maria Ignez Saito — O Programa Saúde do Adolescente do Ministério da Saúde funciona no SUS e atende os dois terços da população com nível socioeconômico menos favorecido. As políticas públicas de contracepção avançaram, pois houve real diminuição de gravidez, em especial entre 15 e 19 anos. Participei como consultora técnica de um programa do Ministério da Saúde e da OPAS chamado Laboratório de Inovação, em que avaliamos os trabalhos de agentes de saúde que se destacavam em atender adolescentes. Isso aconteceu entre 2013 e 2018 e tive oportunidade de ver essas práticas exitosas na Ilha da Maré, na Bahia; em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul; e em Manaus, entre muitos outros lugares. Eram trabalhos emocionantes feitos por pessoas que não buscavam reconhecimento e que foram convidadas a apresentá-los em Brasília. Depois organizamos uma publicação com as práticas, que misturavam cuidados, educação e cidadania, para que fossem exemplo e pudessem ser replicadas.

Notícias da Saúde Infantil — Dos livros que escreveu, qual deles considera mais relevante e por quê?

Maria Ignez Saito — Adolescência: prevenção e risco é o meu livro mais importante e já ganhou três edições. O interessante é que tenho três filhos e os três participam do livro. Todos têm contato com a adolescência, cada um na sua área: Roberta é pedagoga e lida com dificuldades de aprendizagem; Fernando é urologista, foi meu aluno na USP e presidia a liga de doenças sexualmente transmissíveis e atendia adolescentes. Já Rodrigo fez pedagogia e psicologia e trabalha orientando adolescentes em escolas. Ou seja, esse livro não é apenas para pediatras, mas também para pais e educadores.

Notícias da Saúde Infantil — Quais considera que foram as maiores dificuldades e as conquistas na sua carreira, desde o início da hebiatria?

Maria Ignez Saito — A dificuldade é sempre a de quem começou uma coisa nova: tivemos de batalhar pelo novo em todas as frentes possíveis, junto ao Ministério da Ministério da Saúde, à OPAS, unindo as faculdades no Programa de Saúde do Adolescente do estado, usamos todos os recursos para que a medicina de adolescentes fosse realidade no país. Nesse período, houve retrocessos, questões éticas, dificuldades de impor privacidade e confidencialidade, levamos a necessidade de que fizesse parte das residências. Nada foi fácil, mas não tenho fracassos nem arrependimentos. Considero que a Unidade de Adolescentes, que chefiei entre 1996 e 2009, é minha unidade até hoje, pois lá estão as pessoas que eu criei. Quando saí da USP, minha disciplina de pós-graduação tinha de ficar para um docente, e escolhi o professor Clóvis Almeida, que é reumatologista e fez doutorado comigo. Mas a maior conquista em termos universitários é que há quatro anos temos a disciplina Medicina de adolescentes na FMUSP. Ela não existia, nós tivemos de criá-la, e o dr. Clóvis é o primeiro professor titular. Isso é o nosso maior orgulho.

Notícias da Saúde Infantil — Quais são os próximos passos que enxerga na medicina de adolescentes?

Maria Ignez Saito — Visualizo de forma otimista o seu futuro, com algumas preocupações — uma delas é a questão ética do atendimento. Sem liberdade você dificilmente vai ter justiça e paz. Ninguém sabe por que foi escolhida a idade de 14 anos, e mesmo assim existe uma súmula do Superior Tribunal de Justiça, de 2017, apoiando a lei. Então é muito difícil mexer nisso. Mas tirar a liberdade do adolescente por ter uma relação consentida com a namorada é um absurdo inquestionável, que trouxe retrocesso e preocupação. Mesmo assim, a medicina de adolescentes vai continuar, tem alicerces sólidos. Eu sei que vai dar certo porque lancei sementes de valor extraordinário na universidade: os que eram jovens se tornaram pessoas importantíssimas na área e irão em frente sem esmorecer.

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Por Rede Galápagos

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