Instituto PENSI – Estudos Clínicos em Pediatria e Saúde Infantil

O TEA É PARA SEMPRE

O novo ambulatório (PAPE), com capacidade para atender 600 crianças por mês pelo SUS, em imagem do livro Saber para a Saúde Infantil: ambientes desenvolvidos para receber crianças com Transtorno do Espectro Autista. Crédito: Mário Rodrigues

 

Afinal, o autismo tem cura? Vira e mexe pode surgir essa pergunta — e respostas erradas —nas redes sociais, em conversas entre amigos que nem sempre acompanham o tema, ou mesmo na hora difícil em que os pais recebem o diagnóstico do seu filho. As dúvidas são muitas, mas a resposta, nesse caso, é uma só: Não.

Autismo não é doença

Cura é palavra usada para doença. Autismo é outra coisa, é um transtorno, o TEA (Transtorno do Espectro Autista) causado por 80% de fatores genéticos — uma loteria de combinações de genes que podem variar muito — e 20% de fatores ambientais. São fatores enquanto o bebê ainda está no útero, como stress gestacional, idade dos pais acima dos 35 anos, contato com agentes poluentes ou com drogas.

Então cada caso é um caso: os sintomas variam demais e não há um exame específico para detectar o transtorno, mas uma série de características que, juntas, levam ao diagnóstico clínico. Quanto antes ele for feito, melhor, porque assim é muito mais eficaz o tratamento para corrigir comportamentos, oferecer estímulos e ajudar no desenvolvimento — e maior independência — da criança. Aí é que começa a confusão sobre essa história de cura: algumas crianças podem ter uma evolução tão grande no tratamento que dão a impressão de que não têm mais o transtorno. Mas o autismo não “passa”, como saiu na imprensa.

“Quando vejo uma frase como esta, ‘O autismo passa’, já questiono o português. A pessoa quer dizer que o autismo acaba ou que é transmissível? A resposta é não para as duas opções”, diz o dr. Carlos Takeuchi, chefe da Neurologia do Sabará Hospital Infantil. “Algumas crianças melhoram bem e até conseguem, digamos, enganar em várias situações. Já cheguei em alguns casos a rever pacientes anos depois que me deixaram em dúvida sobre meu próprio diagnóstico. Mas aí, fazendo algumas perguntas, observando melhor, sempre confirmo. Porque o autismo não vai embora nunca”, diz.

O tema voltou ao noticiário porque o projeto de lei 665/2020, do deputado Paulo Correa Jr, que previa validade indeterminada para os laudos médicos que atestam o TEA, foi vetado pelo governador Tarcísio de Freitas depois de aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo. Na justificativa ao veto, o governador alegou que “o autismo diagnosticado precocemente até os 5 anos e 11 meses de idade é mutável, podendo tanto mudar de gravidade como até mesmo deixar de existir”. Ele voltou atrás depois dos protestos de especialistas, de pais de autistas e de outros deputados que apontaram o absurdo dessa alegação. “É um dos maiores desserviços que eu já vi na minha vida”, desabafou o apresentador Marcos Mion, pai de autista e grande divulgador de informações sobre o TEA. “O autismo nunca deixa de existir, a não ser que nunca tenha sido autismo, e sim outro tipo de transtorno.”

“É um dos maiores desserviços que eu já vi na minha vida”, desabafou na sua rede social o apresentador Marcos Mion, pai de autista e grande divulgador de informações sobre o TEA. Mion fez novo vídeo depois que o governo se desculpou e voltou atrás da decisão

“Hoje já fazemos o diagnóstico seguro do TEA em crianças a partir dos 16 meses de idade, e essa história de que, até tal idade, isso pode mudar não existe”, explica a dra. Joana Portolese, coordenadora do Laboratório de Autismo (Protea) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Por que é importante não ter prazo de validade

Os pais de autistas sabem bem da importância da aprovação do laudo indeterminado. Entre os direitos e benefícios a quem tem TEA estão medicação gratuita, acesso a tratamento no SUS, transporte público gratuito, liberação do dia de rodízio, direito a reembolso para quem usa planos de saúde etc. Quando um laudo precisa ser renovado, os pais perdem tempo e dinheiro, e — o pior de tudo — as crianças ficam sem tratamento enquanto não se consegue o laudo novo.

“Um laudo não sai em menos de três meses, e se a criança fica sem intervenções durante essa janela de tempo pode regredir muito. A continuidade no tratamento é fundamental para quem tem TEA, e já há uma fila de espera de oito meses para o diagnóstico”, fala a dra. Joana. O dr. Takeuchi, que também atende pacientes do SUS, mostra o tamanho do drama: “Tem uma pilha de laudos para serem feitos, porque não há neurologistas e psiquiatras suficientes para atender a demanda”.

Se a questão do governo se deve a um problema econômico (pelos benefícios concedidos a quem tem TEA), isso também não justificaria o veto, como mostra a dra. Joana. “É importante começar o tratamento quanto antes e não interromper, inclusive para dar mais autonomia às crianças, porque senão elas vão se tornar adultos ainda mais dependentes, e isso vai gerar um custo maior para o governo mais para a frente.”

Combate à desinformação

Felizmente o governador reviu o veto, desculpou-se pelas palavras erradas e, esperamos, o direito ao laudo por tempo indeterminado em breve será implantado.

A dra. Joana vê até um lado positivo nessa confusão, que virou manchete: assim o autismo é ainda mais discutido e as pessoas aprendem mais a respeito. “Os pais de autistas são bastante mobilizados, é um movimento muito organizado, eles logo se posicionam e mais gente acaba sendo informada.” Isso pode ajudar a esclarecer outros mitos, como o de que “agora tudo é autismo”, papo que circula às vezes até entre profissionais de saúde. “A gente tem de ampliar o acesso ao tratamento e o acesso ao conhecimento”, reforça Joana.

“É preocupante a quantidade de desinformação e notícias falsas na área de saúde, já que elas têm um impacto direto na vida das pessoas”, diz Fátima Rodrigues Fernandes, diretora executiva do PENSI. “Sem falar que as informações falsas têm 70% mais possibilidade de viralizar que as verdadeiras, segundo um dos maiores estudos já realizados sobre o tema pelo MIT, o The Science of Fake News. Ou seja, a vigilância precisa ser constante e nós, como instituto de pesquisa que tem como missão disseminar conhecimento sobre saúde infantil, precisamos nos posicionar em defesa dessas crianças, que, infelizmente, não têm voz.”

Por Rede Galápagos

 

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