Esta semana li um texto antigo da Eliane Brum, “A dor dos filhos”, que tratava da angústia dos pais em querer proteger os filhos de um vazio. Um vazio da modernidade que mora dentro de nós, adultos, e que nos afligimos ao ver nas crianças sem poder preenchê-lo.
Este vazio pode ser percebido em outra perspectiva no trabalho com as crianças. Nos primeiros encontros daquelas que frequentam a Casa Ubá elas repetidamente nos perguntam “E agora? O que eu vou fazer?”.
Muitas crianças têm suas rotinas preenchidas com aulas seguidas: natação, inglês, dança, escola… E dentro destas aulas, muitas vezes, as atividades são escolhidas pelos adultos. Sendo assim, nada mais óbvio do que, ao chegar em outro espaço, perguntar “o que é suposto eu fazer aqui?”.
Nossa proposta de trabalho de dar tempo e espaço às crianças pode causar um certo desconforto para quem raramente tem a escolha do que fazer, pode ser vivida como um vazio. É tentador preencher este desconforto, pois poderia facilmente responder inúmeras atividades que esta criança pode fazer neste espaço. “Ler um livro, fazer uma pintura no ateliê, brincar na areia, montar uma cabana…”. Mas é justamente neste desconforto que a criança pode experimentar o brincar em sua maior potência, sem objetivos pré-estabelecidos, descobrir dentro dela própria o vazio. Neste sentido, não é um vazio necessariamente ruim, é sim desconfortável, mas que mobiliza para seu autoconhecimento e é matéria-prima para a criação.
O mesmo vazio foi tratado por coincidência há pouco tempo numa vídeo-conferência com a Renata Meirelles e David Reeks, produzida pelo Instituto Alana, na qual disseram dos espaços vazios que as crianças precisam ter para criar e brincar e que estão sendo preenchidos para que elas não tenham ócio. Preenchidos pela televisão, computador, pelo consumo. Pois a nossa tentativa de preencher este vazio às vezes esbarra no consumo.
Os vazios são preciosos para podermos nos conhecer melhor e para que possamos criar. Me lembro, quando criança, que eram nestes vazios que eu e minha irmã acabávamos montando brincadeiras e faz-de-contas, lembro da loja “Brugas e verrugas” que criamos com a mistura do meu nome com o da minha prima irmã; das culinárias (de verdade e aquelas só de meleca mesmo, quando íamos a um restaurante e misturávamos todos os temperos da mesa); do “gato mia” no quarto escuro; ou mesmo quando acompanhávamos meu pai em seu trabalho no hospital e, para esperá-lo, inventávamos para as pessoas que passavam que ela era a minha mãe e que estávamos no hospital pois eu tinha me machucado, como se elas fossem realmente acreditar. E se este tempo tivesse sido ocupado pelo iPad, pela TV ou pelo consumo, que vazio teríamos preenchido com tanto vazio? O conforto do que é previsível pode desviar nossos caminhos e atropelar nossa criatividade. Como escreve Manoel de Barros:
“A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.”
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Atualizado em 4 de setembro de 2024