Instituto PENSI – Estudos Clínicos em Pediatria e Saúde Infantil

Profissional da saúde sim, tia não

Paulo Freire, patrono da educação brasileira, escreveu o instigante livro “Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar” (1993). Inspirados em algumas de suas posições neste texto, nosso objetivo aqui é refletir sobre o costume no contexto do hospital pediátrico, de profissionais da saúde, exceto médicos, se auto-proclamarem  “tios” ou “tias” ao se relacionar com crianças, aceitando, por igual, que elas e suas famílias os chamem por “tios” ou “tias”. Nossa posição é que não vale a pena estimular a prática de tal denominação, pelos três motivos que destacamos a seguir:

  1. Prazer e exigência. Atuar como profissional da saúde, sobretudo no âmbito pediátrico, é algo que pode ser muito prazeroso. Esses profissionais gostam de cuidar de crianças e ficam felizes quando observam que elas estão melhorando, que podem receber alta e que estão livres, mesmo se temporariamente, dos problemas que as levaram a ser hospitalizadas. O mesmo se aplica às crianças que têm doenças crônicas ou que devem permanecer um tempo prolongado no hospital. Cuidar delas, compartilhar as vicissitudes de seu tratamento e de sua permanência nesse lugar geram um sentimento de familiaridade e um gosto do estar junto e praticar ações de cuidado. Por esse lado, pode ser ou parecer “afetivo” autodenominar-se “tia” ou de gostar de ser assim chamado pelas crianças e suas famílias. Mas, sob outra perspectiva, trata-se de uma profissão exigente, tanto do ponto de vista científico como do rigor dos saberes a serem praticados, visando ao melhor das crianças doentes e hospitalizadas. Podemos, neste sentido, aplicar ao profissional da saúde o que Paulo Freire expressou sobre a tarefa docente:

O prazer de ser, de se comportar e de ser tratado como “tia” não pode diminuir a exigência científica e o rigor do saber aprendido. Ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade no seu cumprimento, enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão, enquanto não se é tia por profissão.

De fato, ser uma enfermeira, por exemplo, implica “assumir uma profissão, enquanto não se é tia por profissão”. Atuar como enfermeiro ou técnico de enfermagem em um hospital pediátrico implica fazer uma formação sofisticada e adaptar esses conhecimentos às tarefas e relações com crianças e seus familiares. Trata-se de uma formação exigente, séria, que requer preparo científico, técnico, emocional e afetivo. O mesmo vale, mudado o que deve ser mudado, para todas as profissões de saúde no contexto de um hospital pediátrico. Implica em querer bem à criança e sua família, oferecer o melhor de si em favor de sua recuperação ou tratamento, mas também se manter atualizado, aprender com a experiência e estar aberto e disponível para aprender e utilizar os novos recursos que estão sempre a aparecer e que demandam um constante aprimoramento profissional.

  1. Não opor, não identificar, nem reduzir profissional da saúde a tia. O problema não é estabelecer uma oposição entre profissional da saúde e tia, nem identificar ou reduzir esse profissional à condição de tia. Tal como a professora, um profissional da saúde pode ter sobrinhos e pode ser, por exemplo, ao mesmo tempo, tia e enfermeira. Tia é uma relação de parentesco e profissional da saúde é qualificação para um trabalho. Cuidar de uma criança hospitalizada não transforma tal profissional em seu “tio” ou “tia”, da mesma forma que ser “tia” ou “tio” não equivale a ser profissional da saúde de seu sobrinho ou sobrinha. Cuidar de crianças hospitalizadas é uma profissão que envolve cumprimento de certas tarefas e implica em uma especialização, enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. É importante para a criança identificar cada profissional da saúde e seu papel no tratamento dela. Desta forma, ela pode compreender sua situação de saúde e colaborar com os cuidados que recebe da equipe multidisciplinar. Como diz Paulo Freire, “ser professora implica assumir uma profissão enquanto não se é tia por profissão”. Um tio ou uma tia podem estar longe dos seus sobrinhos, morar em outra cidade ou país, mas o cuidado da saúde de crianças hospitalizadas requer presença e qualificação profissionais constantes e sofisticadas.
  2. Não se trata de menosprezar a figura da tia, mas sim de recusar uma “falsa”identificação. Recusar a identificação da figura do profissional de saúde com a de tia não significa diminuir ou menosprezar a figura da tia. Por outro lado, como defende Paulo Freire, aceitar essa identificação não implica em valorizar a condição de tia de uma criança. Apoiados nele, ao contrário, significa retirar a responsabilidade profissional fundamental daqueles que trabalham em um hospital pediátrico. Por isso, fazemos nossa, as duas razões invocadas por Paulo Freire para se recusar a denominação de “tia” aos profissionais da saúde. (1) Trata-se, de um lado, de evitar uma “compreensão distorcida da tarefa” desses profissionais e, de outro, (2) destacar “a sombra ideológica” que pode repousar “manhosamente na intimidade da falsa identificação”. Identificar profissionais da saúde como tias poderia significar retirar deles a responsabilidade de agirem como profissionais. Além disso, tia é um nome comum a qualquer pessoa que tem alguém como sobrinho ou sobrinha. Os profissionais da saúde são muito diferentes entre si e atuam, ainda que em conjunto, de forma muito diversificada. Um enfermeiro, um Child Life, uma psicóloga, um terapeuta ocupacional, um fisioterapeuta precisam ser identificados, pois são profissionais muito diferentes um do outro, ainda que todos estejam comprometidos com o cuidado da criança e sua melhor permanência no hospital. Em síntese, profissional da saúde sim, tia não.

 

TEXTO:

Lino de Macedo
Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). É membro da Academia Paulista de Psicologia e do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância e professor emérito pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Integra a Cátedra de Educação Básica do IEA (USP) e é assessor do Instituto PENSI.

Sandra Mutarelli Setúbal
Doutora em Química pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado pela Estação Ciência – USP. É Child Life Specialist pela Universidade da Califórnia de Santa Bárbara, nos Estado Unidos. Atualmente, é presidente do Instituto PENSI, diretora do Voluntariado, coordenadora da Rede de Humanização e responsável pelo programa Child Life do Sabará Hospital Infantil.

Sair da versão mobile