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Semana passada vi o filme “Tarja branca – a revolução que faltava”. Trata-se de um documentário dirigido por Cacau Rhoden, distribuído por Maria Farinha Filmes e patrocinado, principalmente, pelo Instituto Alana. É sobre o brincar de crianças pequenas e das memórias do brincar de crianças grandes, os adultos que foram entrevistados e deram seus depoimentos. Ele mostra e fala da alegria que a música, a dança, a leitura, os brinquedos, as relações lúdicas entre as pessoas, por exemplo, pais e filhos, ou avós e netos, produzem em nossa vida, e nos deixam marcas, para sempre. É que brincar é agradável, dá gosto de fazer e continuar fazendo, conecta-nos com as coisas e os outros, alegra a nossa vida, nos dá sentimento de competência ao permitir que façamos as coisas como sabemos, como queremos, o quanto e com quem quisermos. Daí que o brincar é uma experiência de liberdade, de uma magia que se vive concretamente, porque não se brinca ontem ou amanhã, brinca-se agora e desfruta-se agora do prazer de seu fazer. O brincar é um faz de conta vinculado à realidade, não é uma fantasia que substitui ou antecipa o que se quer fazer, mas é um fazer mesmo, um fazer fantasioso, livre, urgente, criativo que nos aproxima com o melhor de nós mesmos, dos outros e das coisas. Quem brinca, quando brinca, está bonito, saudável, feliz. Está de bem com a vida, está vivo. Não importa se apenas por alguns minutos ou horas. Daí, penso, a metáfora “tarja branca” como etiqueta que classifica as brincadeiras, os brincalhões, os brinquedos e o próprio brincar.
Tarja branca opõe-se, aqui, à tarja preta. Aos medicamentos de alto risco, que só se compra na farmácia com receita médica, que fica retida. Medicamentos que podem causar dependência, que se usa, mas que não se gostaria de precisar usar. Justo o contrário dos “medicamentos tarja branca”. Eles são aconselháveis e bons para todos. O filme mostra bem isso. Todos os depoimentos, as cenas de pessoas grandes e pequenas brincando, os comentários saudosos sobre retratos de uma infância passada e brincada, são prova disso. Tarja branca é o contrário de tarja preta?, pensei. Por isso, o filme, ainda que faça apenas uma referência ao título, ainda que não mostre crianças ou adultos doentes ou hospitalizados, quis se intitular de “tarja branca – a revolução que faltava”. Se Cacau Rhoden me permite, eu diria “que falta” ainda. Sobretudo no contexto do hospital, da escola e da casa, e nos momentos “sérios e importantes”, quando os adultos, que tratam, ensinam ou cuidam das crianças, estão exercendo suas atividades “mais nobres” e bem justificadas. Nessas situações, é como se lúdico não pudesse rimar com lúcido. O filme mostra-nos o contrário disso. Crianças produzindo e brincando com seus brinquedos, adultos preparando-se para a festa e se desempenhando nela, tocando seus instrumentos, dançando, cantando, brincam de forma comprometida, concentrada, focada, felizes e responsáveis por uma vida que vale a pena ser vivida, porque ela é pura graça e magia. É puro reconhecimento de uma dádiva, não importa em que condições ou recursos.
No Hospital Infantil Sabará é isso que buscamos também. Palhaços, cantores, contadores de história, voluntários, cães, e os próprios funcionários da casa organizam-se para criar um ambiente lúdico, para proverem um tempo e espaço em que o brincar da criança possa ser conciliado com o tratar-se e se recuperar para uma vida, que não separa um lá fora (casa, escola) de um aqui dentro (hospital), pois a vê como um contínuo, em que saúde e doença, aprendizagem e desenvolvimento, lúdico e lúcido são partes de um mesmo todo. Pensando assim, “tarja preta” não é o contrário de “tarja branca”, mas um desafio para transformar uma em outra, para tratar uma como se fosse outra. Tal como consegue fazer, ao seu modo, Arnaldo Antunes, com a música “ela é tarja preta”!
Confira o trailer do documentário:
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Atualizado em 20 de junho de 2024