Ao longo destes quase quatro anos de atuação do Pronto Sorrir no Hospital Infantil Sabará fico me perguntando sempre como medir em palavras o impacto de nosso trabalho na vida da criança internada e seus acompanhantes. Tento compreender os motivos para tanta satisfação que todos nós do Pronto Sorrir sentimos ao trabalhar com estas famílias e o aprendizado genuíno que o contato com estas crianças nos proporciona.
O hospital é um lugar muito delicado, onde a palavra “doença” pousa por todos os cômodos. Por mais simples que seja o problema, ninguém vai ao hospital para passear. É um local de concentração, de cuidado, de trabalho coletivo, onde toda a equipe clínica está lá empenhada em “curar” o que precisa ser curado. O desejo pela cura circula por todos os corredores. E neste contexto me pergunto: qual o lugar do artista num ambiente como este? Chegamos ao hospital vestidos de super heróis, de fadas, personagens aventureiros, mas a verdade é que não temos superpoderes, não possuímos injeções mágicas, nem varinhas curandeiras. Nossa formação não nos dá ferramentas para saber curar uma infecção, uma alergia, um câncer. A potência de nosso trabalho está na nossa presença, no nosso compromisso com o brincar, no nosso desejo e ímpeto de estar ao lado da criança, seja qual for sua circunstância.
E vivendo sob a lógica desta realidade da presença e do engajamento pelo bem-estar do próximo por tantos anos, começo a acreditar nas coisas invisíveis. Começo a perceber a magia que existe no gesto atento e carinhoso que oferecemos ao outro.
Volto à infância e recordo das tantas quedas que já tivemos e dos arranhões nos joelhos, nos cotovelos, no corpo todo. Lembro da dor de cada machucado e então me recordo dos sopros e beijos mágicos que muitas mães, pais, avós, tios dedicam a cada ferida de cada ente querido. Estes sopros e beijos são mágicos de verdade, porque de alguma forma sempre aliviam a nossa dor. Dentro de cada gesto de carinho de uma mãe (ou de qualquer outra pessoa), de cada sopro mágico, de cada beijo de fada, de cada olhar atento, esta pessoa legitima a dor que a criança sente. Ela mostra que se importa. Assim, o seu sopro na ferida da criança pode não tirar a dor real do machucado, mas é capaz de tirar a dor impressa na alma da criança. Pois esta dor projetada na alma o beijo cura, ou ao menos pode aliviar.
Sinto que o trabalho que o Pronto Sorrir exerce no Hospital Infantil Sabará tem a ver com este “sopro na ferida para afugentar a dor”. E é por meio da brincadeira e do “escolher acreditar”, que a criança escolhe crer que um sopro é capaz de aliviar sua dor. A brincadeira abre espaços para que possamos interpretar nossa experiência no hospital e na vida de forma mais ampla e fantástica.
O brincar é algo inato na vida de cada ser humano, e a criança conhece o brincar melhor que todos nós. Ela vive para o brincar. E quando brincamos experimentamos situações de vida, treinamos para a realidade. Imitamos. Elaboramos nossas angústias, nossas dúvidas, nossos conflitos. Por vezes, somos obrigados a passar por momentos muito difíceis, que nos trazem muita raiva, e a brincadeira aparece como uma oportunidade de lidar com nosso ódio de uma forma que não estejamos destruídos depois. Estamos raivosos e pelo pacto da brincadeira nos transformamos em monstros terríveis, quebramos carrinhos, rasgamos papéis… Mas ao fim de toda esta experiência intensa, não nos vemos quebrados ao meio, não destruímos aqueles que amamos. Brincamos de ter raiva, brincamos de ser bravos, e tudo se alivia pelo próprio mundo lúdico da fantasia.
No brincar também compreendemos o sentido de efemeridade. A brincadeira aparece, se realiza e num instante se completa, vira outra coisa. Quando brincamos, entendemos que as coisas vem e vão embora. E assim, a brincadeira pode também nos ensinar que uma situação dura de dor, que poderia se tornar permanente na alma da criança, pode também vir, acontecer e desaparecer como cada brincar que experienciamos. A brincadeira pode ajudar a evitar que uma dor tão constante possa se tornar permanente. Ela pode nos ensinar que a dor pode também ser efêmera.
Trabalhar brincando num ambiente com tanta adversidade como em um hospital, onde as coisas estão à flor da pele, é um privilégio para nós do Pronto Sorrir. Adultos atrapalhados que somos, encontramos na nossa frente a criança: presente, inteira, cheia de ludicidade, capaz de nos inspirar a redescobrir nossa criança, resgatar a riqueza de nossa infância, de nossa própria ludicidade. A cada encontro com uma criança, um aprendizado, uma riqueza, uma ferida soprada mutuamente.
Leia também: O que eu tenho aprendido com minha amiga
Atualizado em 24 de setembro de 2024