Dra. Sahlua Miguel, oncogeneticista do A.C.Camargo Cancer Center, e Angelina Jolie na capa da Time: em 2013, a atriz decidiu se submeter a uma cirurgia para a retirada das duas mamas após a realização de um teste genético que mostrou que ela é portadora de uma mutação no gene do BRCA. “O aconselhamento genético se divide entre antes e depois dessa musa”, diz a dra. Sahlua
O câncer infantil acontece quase sempre por fatores embrionários, por mutações nos genes durante a formação do embrião, ou então por uma síndrome hereditária
Muita gente deve se lembrar das tantas reportagens com a estrela Angelina Jolie anunciando que estava retirando as mamas e os ovários depois de descobrir, por um teste genético, que corria grande risco de ter um câncer agressivo como teve sua mãe, que morreu bem jovem. Rendeu assunto. Boa parte do mundo achou que era exagero da atriz, alguns se desesperaram e trataram de fazer exames, e a melhor notícia é que isso botou a oncologia genética nas manchetes e nas conversas do dia a dia. A dra. Sahlua Miguel, oncogeneticista do A.C.Camargo Cancer Center, abre suas aulas com slides citando o caso de Angelina e diz, sem pestanejar: “O aconselhamento genético se divide entre antes e depois dessa musa”.
Hoje, dez anos depois, o teste genético se popularizou e já é uma realidade cotidiana. A dra. Sahlua apresentou seus slides com a história da oncogenética mais uma vez durante o Simpósio de Oncologia Pediátrica do Instituto PENSI, no último dia 15 de julho, quando especialistas do A.C.Camargo Cancer Center e do Hospital Sabará conversaram sobre diversos temas do câncer infantil com pediatras e profissionais de saúde. Com acesso às informações, as famílias que têm vários casos de câncer já querem correr para o médico e pedir o teste. Também está mais fácil fazer isso. Se até há pouquíssimo tempo os testes genéticos eram caríssimos porque o material coletado tinha de ser enviado para o exterior, agora eles existem no Brasil com alta qualidade técnica (ainda não são baratos, mas estão bem mais acessíveis) e cobertura dos convênios estipulada no rol da ANS — um exame para mapeamento de 100 genes custa, em média, 2 mil reais.
Acontece que tão ou mais importante do que o exame genético ainda é a conversa antes e depois dele, como enfatiza a dra. Sahlua. “Os médicos não podem simplesmente fazer um X no quadradinho da folha de exames e pedir um teste genético. Cada caso é um caso, e a leitura dos resultados exige conhecimento específico; então alertamos para que o teste só seja pedido depois de um aconselhamento genético”, diz.
Criança é outra história — Isso vale principalmente na área da pediatria, ainda mais porque a Sociedade Europeia de Oncologia Pediátrica publicou, em 2021, que todas as crianças diagnosticadas com câncer devem passar por uma avaliação oncogenética. Por que as crianças? A porcentagem de casos hereditários nelas é de 10% a 29%, muito maior do que nos adultos (que não passa de 10%). “Todo câncer na criança é genético; não é como no adulto, que pode ter câncer depois de muitos anos se expondo a fatores ambientais. O câncer infantil acontece quase sempre por fatores embrionários, por mutações nos genes durante a formação do embrião, ou então por uma síndrome hereditária”, explica a dra. Cecília Maria Lima da Costa, oncologista pediátrica do A.C.Camargo e do Sabará. Geralmente essas crianças vão ao consultório do oncologista encaminhadas pelo pediatra. Então os médicos precisam aprender a reconhecer os casos e, melhor ainda, perceber que aquele sintoma com cara de inofensivo, pinta de inofensivo, pode sugerir que a criança tem uma predisposição hereditária para o câncer, mesmo que ela ainda não tenha a doença.
Sinais de alerta — Foi assim que o Heitor, 16 anos, chegou ao consultório da dra. Sahlua. “Ele tinha umas manchas escuras na boca e na pele desde que nasceu. Perguntei sobre isso para vários médicos e todos diziam que não era nada importante”, conta sua mãe, Walkiria Ribeiro. Até que uma dermatologista antenada indicou que eles procurassem o aconselhamento genético. As manchinhas poderiam ser o sinal de síndrome hereditária de predisposição ao câncer. Um simples exame de sangue confirmou: ele tem a Síndrome de Peutz-Jeghers, que predispõe a tumores no intestino e no aparelho digestivo. “Fiquei supertranquilo de fazer o teste porque a dra. Sahlua me explicou tudo, que só tenho de acompanhar se terei tumores com exames anuais, e tudo bem”, conta Heitor. A mãe, o pai e o irmão mais velho foram testados também, e o resultado, que alegria!, foi negativo.
Se não tivesse feito o exame, Heitor poderia ser surpreendido por um tumor daqui a uns anos e sua história seria mais complicada. Ou outras pessoas da sua própria família, se tivessem o gene, correriam o risco de descobrir um câncer, talvez tardiamente, porque não sabiam e não se preveniram.
Conselho é fundamental — Mas, se é tão importante, por que o pediatra não pode simplesmente pedir o exame genético? “Porque é preciso orientar as famílias antes e saber ler os resultados depois”, enfatiza a dra. Sahlua. “Um resultado na mãe ou na criança vai ter implicações para todos, e a gente tem de ver se a família está preparada para isso.” E tem mais: receber um resultado negativo não significa exatamente comemorar e esquecer o assunto. “Às vezes o resultado negativo é para os genes conhecidos, mas os testes cobrem no máximo até 250 genes de síndromes de predisposição ao câncer, num universo de 20 mil genes. Então pode ter dado negativo agora, mas isso não significa que a pessoa não tenha uma síndrome hereditária. Só que esse gene ainda não foi descoberto. Se uma família tem muitos tipos de câncer e suspeitamos que, mesmo com o teste negativo, existe o risco de uma síndrome, a gente mantém essas pessoas em acompanhamento e vai repetindo testes a cada vez que surge um novo”, diz a dra. Sahlua.
A má interpretação dos resultados influencia até nos riscos da escolha de tratamentos. “Você pode modular o tratamento pelo dado genético. Se uma criança tem o gene p53 mutado (da Síndrome de Li Fraumeni, que causa vários tipos de câncer ao longo da vida nos familiares), mas o médico não sabe, e ela recebe radioterapia, pode ter uma recidiva por causa disso. Atendi um caso assim recentemente, de uma família com Li Fraumeni em que a criança teve um retinoblastoma, assim como o pai e o avô. Ela recebeu radioterapia, teve um segundo câncer e morreu. O pai só fez o teste depois disso.”
Os tipos de exames genéticos — O material coletado pode ser sangue ou saliva, e os testes variam de um gene único (como no caso do Heitor, que citamos acima) a painéis de poucos genes, ou até 250 genes. Existem ainda os testes bem abrangentes, como o Exoma (o mais completo, que analisa doenças raras e genéticas — não apenas câncer — em 22 mil genes). Os convênios já cobrem alguns testes, mas ainda não costumam aceitar os de crianças. “Nesse caso podemos testar a mãe ou pai”, explica a dra. Sahlua. A decisão de qual exame deve ser feito e em qual pessoa da família é do médico, a partir do aconselhamento pré-teste.
O Sabará e o A.C.Camargo têm uma parceria para tratamento de câncer: os oncologistas do A.C. atendem os casos do Sabará, e os pediatras e demais especialistas em saúde infantil do Sabará acompanham os casos do A.C. Além disso, existe uma parceria entre o Instituto PENSI e o A.C. Camargo para elaboração de cursos e pesquisas em oncologia pediátrica. Para fazer o aconselhamento genético, converse com o pediatra do seu filho — e peça o encaminhamento ou marque você mesmo uma consulta no Departamento de Oncologia Genética do A.C.Camargo. Para quem mora fora de São Paulo, a boa nova é que hoje existem especialistas em oncogenética em todas as capitais do país.
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