As histórias para crianças são recheadas de personagens fantásticos, com conteúdos pedagógicos e tramas simples, em que facilmente identificamos quem são os bandidos e os mocinhos, o bem e mal e o certo e errado. A literatura infantil é um convite a uma aventura para além da aparente narrativa criada pelo autor.
Uma criança formula imagens e cria um mundo de fantasias em que ela é capaz de se identificar com os personagens principais ou coadjuvantes e experimentar, nas mais variadas situações e emoções, possibilidades de construção de si para viver situações no mundo real. Isto é, ela busca elementos nas histórias capazes de compor sua identidade, traduzir suas emoções, exercitar sua inteligência e dizer sobre a sua sexualidade. A consequência disso é a própria constituição do pequenino que está em jogo. O que torna a tarefa do adulto digna de uma importância que merece alguns cuidados e atenção.
Quando criança, ouvia muitas histórias folclóricas horripilantes, na minha cidade natal, que faziam parte do imaginário popular e do vocabulário de meus colegas. Eram sempre cheias de monstros e personagens capazes de povoar meu quarto, quando meu pai apagava a luz, na hora de dormir. Um verdadeiro pavor. Quando minha avó passou a contar esses contos como forma de transmitir a cultura de minha cidade, os monstros deixaram de habitar meu armário, minhas noites de sono passaram a ser tranquilas e meu quarto um lugar agradável à noite. Minha avó fez a função desse intermediário ao narrar as mesmas histórias que ouvia de meus amigos. Ela teve o cuidado de tirar o peso das partes mais tensas da narrativa e a habilidade de transformar um personagem monstruoso em um não tão monstruoso assim. Tornando o mundo (o quarto) não tão assustador.
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Um pai e uma mãe ou um cuidador costumam selecionar tipos de histórias de acordo com suas crenças, valores, religião e cultura que julgam relevante transmitirem aos filhos. O que os tornam intermediários, capazes de se posicionar entre a narrativa e a criança.
Esse posicionamento requer certas habilidades, sensibilidade e sabedoria. É uma verdadeira arte. Pois, para além da narrativa, podemos também transmitir nossos preconceitos, nossas raivas, frustrações ou algo extremamente desnecessário que prejudica o desenvolvimento infantil. Também não devemos ser imparciais ou neutros, pois assim nos tornamos meros espectadores, o que pode ser igualmente ou mais prejudicial à saúde mental do pequenino, principalmente quando existem conteúdos delicados de natureza sexual ou violenta.
Atualmente, vemos crianças, desde muito novinhas, que passam horas a fio na frente de uma televisão, cada vez mais sem a presença dos pais ou de um adulto. Nos EUA, por exemplo, uma criança chega a ficar cinco horas por dia na frente da telinha. Em muitas famílias, por diversas razões, a TV deixou de ser um momento de lazer da vida familiar para se tornar uma espécie de “babá”, com a função de entreter os filhos enquanto os pais estão ocupados.
É fascinante para uma criança o mundo de imagens e das narrativas que a televisão oferece. No entanto, a maioria dos programas exibidos contém conteúdos inapropriados para os pequenos aventureiros, em busca de referências para ler a realidade que os cercam.
Na ausência de um adulto, as imagens bombardeadas pela televisão ficam sem sentido. Mais ou menos assim: a criança bem novinha, quando leva um pequeno tombo, não chora imediatamente. Ele aparece com o susto que o adulto leva. Não foi o tombo em si ou a pequena dor que o cair provoca que a fez chorar, mas sim a leitura que o pequeno fez da reação do adulto (tradutor) de que ele passou por uma situação perigosa. Existe um tempo entre o evento e o que significa. E esse significado foi dado pelo responsável. É nessa mesma lógica que funciona a apropriação da imagem e das narrativas. Se o pequeno se depara com cenas extremamente fortes de violência, sem a devida intervenção da leitura de um cuidador, ele não assimila. Apenas guarda, e em algum momento isso retornará para realidade e será vivenciado como uma atividade lúdica. Isso é bastante comum em crianças hiperativas e com Déficit de Atenção (DDA).
Estatísticas apontam que quanto mais cedo a criança fica exposta aos aparelhos de televisão, maior a probabilidade de desenvolver distúrbios, como obesidade, déficit de atenção, hiperatividade e depressão.
Por isso, a importância de estarmos sempre presentes em cada momento da vida de nossos filhos, principalmente, nos primeiros anos de vida. Desde a escolha a quem delegar a responsabilidade e cuidados dos filhos: babá, escolas, clubes, rodas de amigos, até limitar e orientar cada narrativa, imagem e eventos que os curiosos pequeninos adoram vislumbrar.
Um ambiente de confiança e afeto é a base para sentarmos ao lado de uma criança e exercermos uma das mais antigas formas de educação, transmissão de conhecimento e saber: a conversa e a leitura daquilo que queremos passar na constituição de sua identidade e personalidade.
Por Yan Pinheiro, psicólogo
Atualizado em 20 de fevereiro de 2024