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O longa “Manas”, dirigido por Marianna Brennand, estreou em 15 de maio e já acumula 20 prêmios, incluindo o Director’s Award, no Festival de Veneza.
Manas é mais um grande filme nacional que estreia este ano e que vale a pena ver. No entanto, alerto que se trata de um filme forte, sobre uma temática difícil, o abuso sexual de meninas na ilha do Marajó, no Pará, região Norte do Brasil.
O filme põe em cena um núcleo familiar típico da região, composto por mãe, pai e filhas. Uma delas, a mais velha, já saiu de casa. Outra, Marcielle, de 13 anos, se espelha na irmã que partiu na balsa. Há outra garota, ainda mais jovem. Todo um clima de tensão vai sendo construído de forma progressiva em torno dessa família e da comunidade da qual faz parte. A mãe parece não querer enxergar o que se passa em sua casa. O pai, Marcílio, é um provedor carinhoso — talvez em excesso. Dira Paes interpreta uma policial que tenta ajudar as crianças em situação de insegurança. Mas sente-se manietada por leis permissivas, que privilegiam o pátrio poder. A saída para as meninas parece ser só a balsa que passa pelo local a cada 2 semanas e que levou a irmã mais velha. Não há escapatória aparente.
A exploração sexual de meninas, o abuso cometido por familiares e o uso delas na prostituição infantil são realidades em todo o Brasil e que nossa sociedade não quer ver a verdade por falta de coragem para enfrentar hábitos tão enraizados.
No artigo “Não podemos normalizar o inaceitável”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Michelly Antunes, da Fundação Abrinq, traz dados e menciona como nossa sociedade não se impressiona com os números vergonhosos das estatísticas. Há muitos anos escrevo sobre esse assunto neste blog com a mesma indignação.
Então, vamos apresentar esses números mais uma vez: “A cada nove minutos, uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual no Brasil. Esse dado alarmante revela a gravidade de um problema que permanece, em grande parte, invisível. A maioria desses casos não chega às autoridades, abafados pelo medo, pela vergonha ou pelos laços familiares com os agressores. Quando vem à tona, é porque a dor já se tornou insuportável e os sinais foram ignorados.”
Em 2024, segundo o levantamento recente da Abrinq, mais de 57 mil casos de violência sexual contra pessoas com menos de 19 anos foram notificados na rede pública de saúde. Isso equivale a mais de 156 casos por dia. As meninas são a maior parte das vítimas. No mesmo ano, mais de 85% das notificações de estupro, assédio e violência sexual envolviam vítimas do sexo feminino. Mas os meninos também sofrem e, muitas vezes, de forma ainda mais silenciada. Representam cerca de 15% das notificações, mas enfrentam um estigma social que dificulta a denúncia, a escuta e o acolhimento.
Outra análise que merece atenção trata das crianças vítimas de violência sexual. Meninas de até 14 anos sofrem proporcionalmente mais violência sexual do que mulheres adultas, aponta o Atlas da Violência 2024.
Segundo a análise, em 2022, 30% da violência sofrida por crianças do sexo feminino, na faixa de 0 a 9 anos, teve caráter sexual. Na faixa etária de 10 a 14 anos, o número é ainda maior, de praticamente 50%. Entre 15 e 19 anos, foi de 22%. Depois disso, ele cai para 10% de 20 a 24 anos.
Nesse contexto, os dados divulgados mostram um grande aumento no número de registros de violência sexual em 2021 e 2022 em relação a 2020, justamente no período pós-pandemia. A faixa etária dos 5 aos 14 anos foi a que apresentou a maior elevação, passando de 11 mil registros em 2020 para 20 mil em 2022, um crescimento de 73%. De 0 a 4 anos, subiu 51% (de 3.400 para 5.200), e de 15 a 19 anos, 42% (3.300 para 4.900).
Esses dados são extremamente importantes quando nosso Congresso discute pautas como o aborto em casos de estupro e a educação domiciliar (homeschooling). O aumento significativo da violência doméstica, incluindo a sexual, contra as meninas durante a pandemia está claramente associado ao maior tempo em casa. A violência sexual contra crianças é sempre associada a alguma pessoa da convivência familiar, sendo em mais de 80% um familiar direto, como mostra o filme.
Profissionais de saúde, vizinhos, familiares, conselheiros tutelares, educadores, todos têm um papel a cumprir. E denunciar é um ato de proteção. Em caso de suspeita ou confirmação de violência sexual, o Disque 100 está disponível, assim como os Conselhos Tutelares e as delegacias especializadas. Mas é preciso ir além da denúncia: garantir o acolhimento à vítima, interromper o ciclo da violência e responsabilizar os agressores.
Como diz Michelly Antunes, “o silêncio é cúmplice e mantém a violência sexual contra crianças e adolescentes como uma ferida crônica no Brasil. Não se trata de episódios isolados, mas de uma epidemia social que atinge todas as regiões, classes sociais e faixas etárias. Combater essa realidade exige a mobilização ativa de toda a sociedade. A omissão não é mais uma alternativa e o momento para agir é agora, antes que mais vidas sejam marcadas pela violência.”
Nossa Fundação cumpre seu papel ao levantar dados, realizar pesquisas e promover campanhas de conscientização, atuando também na região Norte, onde se passa o filme, mas tudo isso ainda é uma gota de água no oceano. Nós, como sociedade, precisamos nos movimentar.
Fontes:
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Atualizado em 6 de junho de 2025