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Confira abaixo a entrevista exclusiva da presidente do Instituto PENSI e diretora do Voluntariado, Dra. Sandra Mutarelli Setúbal, para o livro: “O SABER PARA A SAÚDE INFANTIL – OS PRIMEIROS DEZ ANOS DO INSTITUTO PENSI”
Não é nada fácil lidar com a dor do outro, especialmente quando o outro é uma criança. Por isso é compreensível quando um voluntário que trabalha em um hospital infantil joga a toalha, desiste. Em contrapartida, os que ficam costumam dizer que recebem muito mais do que doam. Equação difícil, mas linda. Coordenado por Sandra Mutarelli, o voluntariado é um dos pilares do PENSI. Casada há 32 anos com José Luiz Setúbal, ela foi e é figura central para a evolução, profissionalização e disseminação do conceito de cuidado humanizado, priorizado desde sempre por seu marido, pediatra. Sandra também tem o título de doutora, vindo do mestrado e doutorado em química, área que abraçou por anos como professora na Universidade de São Paulo e em colégios paulistanos.
Em 2012, por sugestão de uma cunhada, dedicou-se a visitar hospitais pediátricos ou com alas pediátricas que possuíam corpo de voluntários, como o Darcy Vargas, o Graacc e o Sírio-Libanês. A ideia era conhecer os programas e a atuação dos voluntários dentro dos hospitais para criar algo profissionalizado no Sabará. Nesses locais, participou dos cursos de formação. Também fez o curso de gestão de voluntários no Centro de Voluntariado de São Paulo e conheceu Valdir Cimino, da Associação Viva e Deixe Viver, que ajudaria na formação do voluntariado do Sabará. Nasceu assim um regimento interno, com missão, valores e um manual do voluntário.
Tempos depois, Sandra também se interessou em trazer ao Brasil a especialidade de Child Life Specialist, profissional que existe nos Estados Unidos desde 1920 e que ajuda a criança a lidar com o estresse devido à hospitalização. Ela mesma fez o curso para se aprofundar na especialidade, que atua em conjunto com outros profissionais como enfermeiros, músicos, nutricionistas e os próprios voluntários. Formou, assim, uma rede de pessoas para contribuir cada vez mais para o propósito do hospital e ampliar o conceito de humanização. O tipo sanguíneo de Sandra? Fator Humano Positivo.
Você estudou e se tornou uma Child Life Specialist, profissão que ainda não é regulamentada em nosso país. Como é a atuação desse profissional?
Sandra Mutarelli — Meu primeiro contato com o Child Life Specialist aconteceu em 2014, quando meu marido, José Luiz, trouxe um documento que mostrava as habilidades e capacidades sobre a profissão e me perguntou se eu já tinha ouvido falar a respeito. Não tinha. Aí compartilhei com o Lino de Macedo, professor emérito do Instituto de Psicologia da USP, especializado na psicologia do desenvolvimento aplicada à educação e à saúde da criança, e fomos pesquisar. Descobrimos que se tratava de um profissional que existe nos Estados Unidos desde 1920 e que ajuda a criança a lidar com o estresse devido à hospitalização. Entrei em contato com o Child Life Council e soube que estavam organizando um summit internacional. Como não tinham representantes do Brasil, perguntaram se eu gostaria de participar. Expliquei que não era da área, mas que meu marido era, e assim fomos juntos. Para aproveitar a viagem e aprofundar conhecimento, entrei em contato com uma amiga de infância que mora em Orlando e, ao descobrir que havia essa especialidade no Florida Hospital, onde ela trabalhava, pedi para conhecer. Fiquei quatro dias acompanhando o trabalho lá. Vi crianças levando pontos no rosto sem chorar, entrando para fazer ressonância sem tomar anestesia geral, tirando sangue sem medo… Sempre calmas com a atuação das child lifes specialist. Impressionada, quis trazer a especialidade para o Brasil.
Como você fez para incorporar a especialidade ao Sabará?
Sandra Mutarelli — Conversei com Debbie Spencer, que era coordenadora clínica do hospital na Flórida, e perguntei se poderia ficar mais tempo, mas a resposta foi negativa. Para realizar um intercâmbio, seria necessário fazer todo o curso ao qual as demais pessoas eram obrigadas. Os requisitos são ter bacharelado e fazer cursos de desenvolvimento infantil; dinâmicas familiares; brincadeiras em lugares do hospital; morte, morrer e luto; pesquisa em ciências da saúde. É necessário também fazer mais três cursos ligados à área da saúde e um de introdução ao Child Life ministrado por uma child life certificada. Fazer tudo isso seria inviável, mas em seguida descobri que a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, estava criando uma formação de child life specialist on-line para pessoas de fora dos Estados Unidos. Fiz dez cursos na Universidade da Califórnia. O estágio, de 600 horas, teve início nos Estados Unidos e prosseguiu no Brasil, com envio de relatórios diários. A avaliação do meu desempenho foi positiva e continuei enviando relatórios e filmagens do meu trabalho. Voltando aos Estados Unidos, levei várias dúvidas e propostas de adaptação do trabalho à cultura brasileira. Uma das diferenças é que lá o child life specialist não pode tocar na criança, o que seria muito difícil no Brasil. Uma vez certificada, comecei a formar um time. Em 2018, a psicóloga Dora Siqueira Leite foi a primeira contratada, seguida de outras profissionais. Com a certificação do Conselho Americano, em 2020, facilitou para a Dora formar os alunos do Sabará, já que não seria mais necessário enviá-los para o exterior, bastando a supervisão on-line.
O Instituto PENSI inaugurou em 2019 a pós-graduação lato sensu em psicologia e saúde da criança na qual, entre outras coisas, os alunos têm a oportunidade de conhecer a atuação dos child life specialists dentro da equipe multidisciplinar. Fale sobre o programa.
Sandra Mutarelli — Sim, realizamos em parceria com a Faculdade Educatie a pós-graduação Psicologia e Saúde da Criança com o objetivo de abordar como a psicologia e a saúde podem se articular visando ao melhor para o desenvolvimento da criança, para sua educação e para a sua vida. O professor Lino de Macedo foi o coordenador do curso e a psicóloga Gabriela Zemel, a vice-coordenadora. A primeira turma foi bastante heterogênea, com médicos, psicólogos, pedagogos e enfermeiros. Foram 400 horas de aula, com 40 horas de prática de estágio supervisionado e a realização de um trabalho de conclusão de curso. Ao todo, participaram 32 professores. Bem bacana.
O conceito de humanização é um dos principais pilares do Sabará e, para funcionar, é essencial a atuação em conjunto, com os diversos setores no mesmo propósito. Como organizar essa rede?
Sandra Mutarelli — O cuidado humanizado ao paciente faz parte de uma cultura, a cultura das relações humanizadas. As iniciativas para o cuidado humanizado ao paciente e sua família podem se dar de diversas maneiras e por diversos agentes. Juntamos pessoas preparadas para amenizar o estresse da hospitalização pediátrica. O desafio é que o conceito de humanização esteja na consciência e na ação de todos, da recepcionista ao presidente do Sabará. Junto com voluntários, profissionais do hospital como enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos e o child life specialist atuam em rede. A enfermeira, por exemplo, pode prescrever a visita de um músico ou arte-educador; voluntários podem acessar o psicólogo, e por aí vai. No dia a dia, seguem uma tabela de grau de risco à qual todos têm acesso, com casos prioritários. E interagem de maneira ágil, trocando mensagens internas. Por exemplo: uma voluntária foi visitar uma criança e a achou muito prostrada. Ela pode acionar a psicóloga para uma visita. Uma garotinha do apartamento 1203 diz para a enfermeira que está com saudade da Chapeuzinho Vermelho. A enfermeira aciona a pessoa que se veste da personagem, e assim por diante. A ideia é sempre otimizar o atendimento das crianças e alinhar a nossa forma de atender.
Há dez anos, você foi a responsável por montar o voluntariado no Sabará, um dos pilares de atuação do PENSI. O que a motivou e como evoluiu esse processo?
Sandra Mutarelli — Os primeiros movimentos nesse sentido surgiram um pouco antes da inauguração do novo Sabará pelo José Luiz, com a contratação de músicos para se apresentarem na sala de espera, pintura das paredes para propiciar um ambiente mais acolhedor e disponibilização de brinquedos com os quais as crianças poderiam se entreter durante a espera. Posteriormente, em 2006, um grupo de enfermeiras, coordenadas pela Flávia Russo, passou a desenvolver atividades lúdicas com as crianças, como comemorações de Natal e festa junina. Um dos grupos parceiros mais antigos na humanização é o Saracura, uma organização especializada em música aplicada aos cuidados de saúde. Embora se apresente em mais de uma dezena de hospitais, nasceu no Sabará em 2003, de forma despretensiosa, com 4 integrantes. Hoje são mais de 40 profissionais. Em 2013, chegaram o grupo Pronto Sorrir, formado por arte-educadores, e o Cão Terapeuta, no qual os cães vão brincar com as crianças. Todos com o objetivo de oferecer aos pacientes e familiares momentos de boas experiências e lembranças positivas do período de internação.
Como evoluir, profissionalizar e disseminar o conceito de humanização entre tantos profissionais?
Sandra Mutarelli — Fazemos reuniões mensais entre os times de enfermagem, psicologia, child life, fisioterapia, nutrição, hospitalidade, paliativos, além dos grupos Saracura, Pronto Sorrir e Voluntariado Viva e Deixe Viver. Discutimos casos mais delicados, além de falar dos conceitos e trabalho do próprio grupo de humanização. Há constante troca de experiências entre esses grupos de profissionais do hospital, os arte-educadores e os musicistas. Essa troca sobre a experiência na prática vai aprimorando e evoluindo o atendimento e reafirmando o conceito.
Você criou um regimento interno, com missão, valores e um manual do voluntário. Qual a importância de ter isso documentado?
Sandra Mutarelli — Para conseguir manter um programa de voluntários é muito importante ter uma identidade, uma personalidade. O voluntário pode escolher onde quer trabalhar, onde se reconhece e se sente acolhido. Nosso programa de voluntariado é um projeto social da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES), cujo propósito é uma infância saudável para uma sociedade melhor. Os valores da fundação são os nossos valores e também daqueles que nos procuram. São eles: humanismo (acreditamos no ser humano em primeiro lugar, respeitando a individualidade e a diversidade); filantropia (acreditamos na filantropia como uma das formas de ação na construção de uma sociedade melhor); ética (acreditamos no respeito, integridade e atitudes responsáveis nos nossos compromissos); cuidar (acreditamos que nossos cuidadores atuam com compaixão, cooperação e comprometimento); conhecimento (acreditamos no conhecimento como instrumento de transformação da sociedade); sustentabilidade (acreditamos na sustentabilidade, através da gestão eficiente, com qualidade e inovação). E o manual estabelece um escopo, não só o que almejamos, mas como trabalhamos, quais são nossas regras, quais os cuidados que devem ser tomados ao trabalhar em um hospital, e assim por diante. Isso é muito importante para que o voluntário saiba se está de acordo com nossos valores e nossas regras.
Diferentemente de outros hospitais, nos quais as equipes de voluntários podem trabalhar dando informações ou com captação de recursos, por exemplo, os voluntários do Sabará têm a função de brincar com as crianças. Por quê?
Sandra Mutarelli — Desde o nascimento do programa, escolhi essa vocação para o voluntariado. A vocação para o brincar. Através da brincadeira a criança pode sair do ambiente hospitalar, relaxar ou expressar o que a incomoda. A brincadeira é a ferramenta mais potente que a criança tem para se expressar. Muitas vezes os pais de pacientes estão exaustos, dia após dia, sem condições de brincar. A entrada de um voluntário com um jogo, uma boneca, uma caixa de lápis de cor alegra a criança e dá àquela mãe a oportunidade de relaxar um pouco, ligar para casa à vontade, fazer uma videoconferência com seu filho, ou mesmo bordar com outro voluntário, que entra e oferece a ela uma atividade.
Um dos maiores desafios nesse setor é a assiduidade. Como trabalhar para diminuir o número de desistências? Quais as estratégias de fidelização?
Sandra Mutarelli — A dificuldade das pessoas em lidar com a dor de outros, o que se agrava mais tratando-se de crianças, é uma das principais causas de desistências. Para evitarmos isso, deixamos bem claro para as pessoas como funciona o voluntariado no Sabará. A formação teórica dos voluntários dura nove horas, ministradas em três dias por uma semana, e há uma formação prática. Eles visitam todas as instalações do hospital, recebem noções de desenvolvimento infantil e dos tipos de brincadeira mais adequados para cada idade, noções de primeiros socorros, infecção hospitalar, comportamento ético, assiduidade, comprometimento e gestão do tempo. Com a palestra de uma psicóloga e depoimentos de outros voluntários, entendem as peculiaridades de trabalhar com crianças doentes e os tipos de situações que podem ser encontradas — da criança recebendo inalação à criança fazendo quimioterapia. Ganha o jaleco rosa quem mostra assiduidade após dois meses. Fazemos três cursos de formação por ano. Dos 120 que terminam, cerca de 40 permanecem de maneira engajada. Para aumentarmos a fidelização, damos feedbacks, parabenizamos quando recebem elogios pelo SAC e valoramos a hora doada pelo voluntário. No final do ano, verificam-se quantas horas foram doadas e apresenta-se aos voluntários quanto o hospital deixou de gastar porque eles estavam ali. Como retribuição pelo trabalho não remunerado, o Sabará oferece atendimento psicológico e uma série de palestras e oficinas. Também têm à disposição uma salinha exclusiva. Acredito que você consegue oferecer um tratamento humanizado à medida que recebe um tratamento humanizado. Por isso a importância do cuidado com os voluntários.
Por Rede Galápagos