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No dia 22 de março, viralizou um vídeo pela internet que mostrava algumas crianças pequenas, talvez com 5 ou 6 anos, num corredor em uma escola em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Mostrava crianças assustadas com o barulho de um grande tiroteio que ocorria fora da escola. Elas seguiam as orientações de uma professora heroína, que pedia para não se levantarem e que mantivessem o espaçamento necessário por causa do vírus da Covid 19. Necessário dizer que estavam todos de máscara.
Eu recebi este vídeo do meu amigo Edu Lyra, do Gerando Falcões (para quem não conhece. Edu é um líder social que trabalha com favelas por todo o Brasil) , com a seguinte mensagem:
“Porque temos que continuar. As crianças não merecem viver entre tiros e opressão”
Em 2013, fiz um curso na Universidade de Harvard voltado para lideranças que tivessem interesse em atuar com a primeira infância. Foi lá que tive o imenso prazer em conhecer o neuropediatra e um ser humano excepcional, o professor Jack Shonkoff e também o professor Charles Nelson, ambos estudiosos proeminentes desta fase da vida e que já estiveram algumas vezes conosco no Sabará Hospital Infantil e no Instituto Pensi. Foi aí que entrei em contato pela primeira vez com o conceito do estresse tóxico.
O estresse é uma resposta fisiológica a uma situação adversa. Quando produzido, desencadeia mudanças químicas no nosso corpo, que afetam os sistemas imunológico, endócrino e neurológico. O Centro de Desenvolvimento da Criança da Universidade Harvard, cita três tipos diferentes de resposta ao estresse: positiva, tolerável e tóxica, dependendo do efeito que essa reação tem sobre o corpo. Mas enquanto as duas primeiras fazem parte do desenvolvimento normal de uma criança, a terceira é prejudicial.
Quando o estresse é tóxico? A resposta tóxica ao estresse pode ocorrer quando uma criança vivencia uma dificuldade forte, frequente e prolongada, sem apoio adequado de um adulto. Entre os exemplos, estão negligência, abuso físico ou emocional, exposição à violência, vício em drogas, problemas mentais ou uma elevada carga de pobreza. Crianças que têm esse tipo de resposta prolongada ao estresse podem ter saturação e interrupção do desenvolvimento de cérebro, especialmente durante os períodos mais sensíveis do crescimento infantil
Nos estudos do centro de desenvolvimento da criança de Harvard, o professor Shonkoff mostra que uma criança afetada pelo estresse tóxico durante os primeiros anos de vida, será afetada pelo resto da vida. Isso afetará sua saúde, seu rendimento escolar e como consequência sua vida como profissional.
Como ficarão as crianças que aparecem neste vídeo? Como estão as crianças que vivem nas comunidades mais pobres?
Vejam alguns números do Brasil para entender que boa parte das nossas crianças vivem sobre estresse tóxico:
O Unicef mostrou num relatório, como a pobreza afeta nossas crianças. Utilizando dados da Pnad de 2015, o relatório mostra que 61% das crianças e adolescentes do País são pobres, quer porque estejam em famílias com renda insuficiente, quer porque sofrem diversas privações. São 18 milhões de crianças e adolescentes que vivem em famílias com renda insuficiente. Outros 14 milhões até dispõem de renda considerada suficiente, mas sofrem privações múltiplas em outros aspectos essenciais. De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve quase 5 mil mortes violentas de crianças e adolescentes em 2019, sendo que 75% eram negros. O número corresponde a 10% do total de mortes violentas do ano passado. Apenas 21 estados informaram os dados. Essa foi a primeira divulgação do levantamento, realizado em parceria com a Unicef.
As estatísticas do Rio parecem ser piores, mas isso ocorre no Brasil inteiro. Crianças são mortas por balas perdidas, abusadas sexualmente, negligenciadas ou maltratadas, e a sociedade parece não se importar.
Em que país vivemos? Em que país queremos viver?
A ONU propõe os Objetivos de Sustentabilidade ou Agenda 2030, e elencou entre os quatro primeiros erradicar a pobreza, erradicar a fome, e promover saúde, bem-estar e educação inclusiva. Deveriam ser o suficiente para ajudar a acabar com esta situação. Mas, de 2015 para cá, quando esta agenda foi instituída, o panorama no Brasil parece só piorar em relação à desigualdade e à violência, sobretudo contra jovens negros de periferia.
O ECA é importante, é um sucesso em muitas coisas, mas as crianças e jovens do Brasil ainda são vítimas de muitos abusos de várias ordens. Para isso, confirmando a posição do Edu Lyra, fundações como a nossa precisam mobilizar a sociedade civil organizada para proteger essa população vulnerável e continuar esta luta. Não podemos esquecer do nosso propósito: infância saudável para uma sociedade melhor.
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