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Pesquisa inédita da Unifesp indica que crianças e adolescentes com asma moderada ou grave exibem até três vezes mais ansiedade e depressão do que portadores de casos leves, ampliando o debate sobre integrar a saúde mental ao tratamento respiratório no Brasil. Na foto, Fernanda Pires Cecchetti Vaz e o pôster com o trabalho de sua equipe: terceiro lugar entre Profissionais da Saúde no 5º Prêmio Pensi
Quando a alergista imunologista Fernanda Pires Cecchetti Vaz percebeu que fases agudas de asma em crianças e adolescentes costumavam vir acompanhadas de choros contidos, irritação ou medo de correr, decidiu transformar a impressão clínica em hipótese científica. Doenças crônicas, ela sabia, podem reduzir resiliência emocional, mas os dados para infâncias asmáticas eram raros e conflitantes. “A gente via muita discussão sobre obesidade ou diabetes e depressão, quase nada sobre asma, que é igualmente prevalente”, lembra.
Vaz desenhou um estudo transversal no ambulatório de asma da Unifesp, onde 100 pacientes de 6 a 18 anos já eram monitorados em consultas regulares. Dividiu o grupo segundo a gravidade, de acordo com diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia — leve, moderada ou grave —, e excluiu participantes com outras enfermidades crônicas ou diagnóstico psiquiátrico estabelecido para evitar ruído estatístico. Cada criança ou adolescente respondeu, com apoio dos pais, ao Child Behavior Checklist (CBCL), questionário validado em mais de 100 culturas e que rastreia indicadores de ansiedade, depressão, queixas somáticas, isolamento social, agressividade e desatenção. Ao final, fichas clínicas, frequência de crises, uso de medicação e dados demográficos completaram o mosaico.
Os números saltaram da planilha: 43% dos asmáticos moderados ou graves pontuaram acima da linha de alerta para ansiedade; 37% para depressão. Entre os portadores de asma leve, as taxas caíam para 18% e 12%, respectivamente, diferença estatisticamente significativa. Outros domínios do CBCL, como distúrbios internalizantes — soma de ansiedade, depressão e isolamento —, e externalizantes — hiperatividade e comportamento opositor — seguiram o mesmo padrão.
A estratificação etária surpreendeu. Crianças de 6 a 11 anos exibiram escores mais perturbadores do que os dos adolescentes, talvez porque os mais novos ainda não dominem estratégias de nomeação e enfrentamento emocional. O sexo não influenciou os resultados, contrariando a hipótese de que meninas tenderiam a apresentar maior internalização de sintomas. Vaz alerta que a amostra é pequena para bater o martelo, mas o sinal pede atenção: “O sofrimento pode começar antes de a criança ter vocabulário para descrevê‑lo”.
Em consultório, as estatísticas ganham rosto. Um garoto de oito anos contou que evita futebol no recreio com medo de precisar da bombinha diante dos colegas; uma mãe relatou que interrompe a brincadeira da filha no primeiro sinal de ofegância. “Esses episódios explicam por que a doença respiratória vira obstáculo social e emocional”, analisa a médica. Estudos internacionais sugerem caminho bidirecional: adrenalina desencadeada por ansiedade estreita as vias aéreas, crises repetidas aumentam o medo de sufocar, e o ciclo se fecha sobre pulmão e mente. Embora o ambulatório da Unifesp funcione em regime de atendimento público, Vaz reconhece que a amostra ainda não permite fatiar resultados por renda ou escolaridade. “Será um dos recortes de fases futuras; precisamos entender se a pobreza amplifica o impacto psíquico ou se a prevalência elevada atravessa classes”, diz.
Para a autora, o dado mais urgente não reside na causalidade — O que veio primeiro? Ansiedade ou mau controle respiratório? —, mas na ausência de rastreio sistemático. “Nós, médicos, ficamos presos ao estetoscópio”, comenta. O CBCL completo leva cerca de quinze minutos, tempo inviável em consultórios superlotados. Vaz estuda a adoção de versões reduzidas que cabem na sala de espera e sinalizam quais famílias merecem avaliação aprofundada.
Uma vez identificado o risco, ela propõe trilha interdisciplinar articulando pneumologista, psicólogo e, quando necessário, psiquiatra. As intervenções podem incluir terapia cognitivo‑comportamental para controlar medo de crise, grupos educativos que ensinam uso correto de medicação e sessões de fisioterapia respiratória para devolver confiança ao exercício físico. Evidências preliminares de outros países mostram que combinar exercício supervisionado e aconselhamento psicológico reduz visitas a prontos‑socorros e melhora a adesão ao corticosteroide inalatório.
O reconhecimento como terceiro lugar na categoria Profissionais da Saúde do 5º Prêmio Pensi trouxe visibilidade e estimulou publicação em periódicos de acesso aberto — condição vital para que resultados cheguem a pediatras do Sistema Único de Saúde espalhados pelo país. Mais importante, financiou a fase dois do projeto: acompanhar o mesmo grupo por três anos, medindo se intervenções em saúde mental alteram curvas de função pulmonar, número de crises e ausência escolar.
Paralelamente, Vaz negocia parceria com centros de referência no interior paulista e no Nordeste para dobrar o tamanho da amostra e testar instrumentos de triagem digital, acessíveis por celular. “Queremos eliminar barreiras logísticas; se a mãe responde ao questionário no aplicativo, chego à consulta sabendo quem precisa de olhar mais demorado”, explica. Outra meta é mapear marcadores biológicos — níveis de cortisol salivar, por exemplo — que ajudem a prever exacerbações associadas ao estresse.
Enquanto as linhas de financiamento demoram a se concretizar, a alergista já ajustou a própria anamnese. Entre o sopro expiratório e a contagem de sibilos, pergunta à criança o que ela deixou de fazer no recreio e, à mãe, como ela reage quando o filho corre. Se percebe constrangimento, descreve a espiral entre medo e falta de ar, valida o sentimento e sugere triagem formal na consulta seguinte. “A simples nomeação da ansiedade já diminui o peso e mostra à família que o problema é legítimo, não frescura”, observa.
Médicos de outras especialidades também podem agir. Vacinação, consultas escolares e exames de rotina são oportunidades para indagar sobre limitações cotidianas, sono fragmentado ou irritabilidade. Vaz reforça que a triagem não substitui o diagnóstico psiquiátrico, mas evita que um adolescente se perca entre crises silenciosas enquanto todos olham apenas para o volume do chiado.
O recado da pesquisa é direto: a asma não termina no tórax. Sob o ruído bronquial podem respirar medos que a bombinha sozinha não dissipa. Assim, trazer saúde mental para o centro do protocolo é uma estratégia de eficácia clínica. Se o estudo de Fernanda Vaz prosperar, a consulta que hoje mede o pico de fluxo expiratório poderá ouvir, também, o ritmo das emoções.
Vaz, Fernanda Pires Cecchetti; Moraes, Marilia Magalhães; Solé, Dirceu; Wandalsen, Gustavo Falbo; “EXISTE RELAÇÃO ENTRE ASMA E DISTÚRBIOS DE COMPORTAMENTO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES?”, p. 432. In: Anais do 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil. São Paulo: Blucher, 2024.
ISSN 2357-7282, DOI 10.5151/sabara2024-3058
Por Rede Galápagos
O conteúdo integral das pesquisas selecionadas pode ser acessado neste link: 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil – Blucher Medical Proceedings
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