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Retrato de 933 casos revela como a prática clínica reage à resistência bacteriana em pediatria
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Retrato de 933 casos revela como a prática clínica reage à resistência bacteriana em pediatria

Retrato de 933 casos revela como a prática clínica reage à resistência bacteriana em pediatria

01/09/2025
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Estudo retrospectivo oferece evidências para refinar protocolos de antibioticoterapia na infância. As médicas residentes Letícia Santos Corrêa e Paola Romani Ferreira Suhet, autoras do estudo, conquistaram o terceiro lugar no Prêmio Pensi

Poucos quadros infecciosos se apresentam de modo tão traiçoeiro na infância quanto a infecção do trato urinário (ITU). À primeira vista, uma febre sem explicação ou um choro persistente podem parecer episódios banais, porém escondem um risco de comprometimento renal silencioso caso o diagnóstico demore. Com essa preocupação, as médicas residentes Letícia Santos Corrêa e Paola Romani Ferreira Suhet mergulharam no prontuário de 933 crianças atendidas ao longo de 2022 no Sabará Hospital Infantil, em São Paulo. O esforço investigativo — reconhecido com o terceiro lugar na categoria Residentes do 5º Prêmio Pensi de Pesquisa em Saúde Infantil — resultou num retrato minucioso da realidade microbiológica local e numa revisão imediata de protocolos de antibioticoterapia. “A sistematização foi um dos grandes diferenciais do trabalho, permitindo gerar dados confiáveis com alto potencial de aplicabilidade clínica”, avalia Paola, que conduziu a triagem dos registros ao lado da colega.

Do ponto de vista metodológico, o estudo adotou um desenho retrospectivo rigoroso. Todas as variáveis clínicas, laboratoriais e de imagem foram extraídas segundo um protocolo padronizado e depois organizadas na plataforma REDCap. A dupla de residentes assumiu a fase mais árdua, aquela que exige inspeção cuidadosa de cada documento digital, linha por linha. Esse trabalho manual, reforçado por tutoria metodológica da equipe de pesquisa do Instituto Pensi, assegurou a consistência dos dados tanto na origem quanto no tratamento estatístico subsequente. “Discutimos cada resultado com rigor metodológico, ponderando não apenas o que os dados mostram, mas também aquilo que silenciam”, observa a autora, apontando para um aprendizado que transcende tabelas de prevalência: a leitura crítica como dívida permanente do pesquisador clínico.

Uma radiografia fiel da prática pediátrica

Os números coletados são inequívocos. Entre os 933 episódios documentados, Escherichia coli despontou como agente dominante, isolada em 57,3% das uroculturas positivas — proporção que confirma linhas gerais da literatura, mas, sobretudo, serve de bússola para a escolha de esquemas empíricos iniciais. A prevalência de refluxo vesicoureteral em 15,6% das crianças submetidas à uretrocistografia miccional realça o peso das malformações anatômicas na história natural da doença. Já a taxa global de internação, de 11,4%, reflete maior gravidade nos pacientes com comorbidades ou alterações estruturais concomitantes.

Outro ponto sensível emerge da análise do tempo de prescrição. Em parcela expressiva dos casos, a primeira dose de antibiótico precedeu a coleta da urocultura, prática arriscada que pode mascarar patógenos e inflar índices de resistência. “Esse dado reforça a necessidade de um olhar clínico atento e da coleta adequada da urocultura antes da primeira dose de antibiótico”, destaca Paola. O lembrete ganha peso numa conjuntura em que o arsenal terapêutico se estreita diante do avanço global de cepas multirresistentes.

Resultados que apontam para ajustes terapêuticos

A equipe quantificou a sensibilidade dos microorganismos a duas moléculas largamente usadas em pediatria: amoxicilina associada a clavulanato e cefuroxima. A resistência ficou em 6% para a primeira combinação e 8,6% para a segunda. Embora relativamente baixos, esses percentuais acendem a luz amarela: a eficácia atual não garante validade indefinida. O estudo sugere revisões periódicas, capazes de antecipar mudanças na fauna bacteriana e evitar falhas de cobertura. Nesse sentido, um dos frutos imediatos foi a elaboração de um protocolo institucional de antibioticoterapia empírica. A fórmula nasce de dentro para fora, ajustada à flora hospitalar do Sabará e apta a evoluir conforme novos ciclos de vigilância se consolidem.

A discussão sobre profilaxia não se encerra nas escolhas farmacológicas. Há também um recado sobre tempos e modos de seguimento. Em lactentes que estreiam no quadro apenas com febre, a indicação de exames de imagem depende agora de critérios mais nítidos, ancorados na experiência local. O mesmo vale para decisões acerca do encaminhamento ao especialista em nefrologia ou cirurgia: padrões de recorrência, presença de refluxo e idade de apresentação passaram a ser considerados em grades de risco mais granulares.

Lições imediatas para o pronto‑socorro

No cenário agitado do pronto atendimento pediátrico, reconhecer sinais discretos de ITU pode ser decisivo. Febre alta sem localização, irritabilidade e recusa alimentar em bebês pequenos figuram como motivos de cateterismo vesical para coleta de urina, mesmo quando a queixa urinária clássica ainda não se manifesta. Esse conjunto de sintomas ganhou ênfase após o estudo, pois emergiu como a moldura clínica predominante nos casos confirmados. Além disso, dados mostram que crianças já treinadas para controle esfincteriano podem regressar temporariamente à urgência ou ao escape urinário — indícios que, se forem apreciados a tempo, conduzem a diagnóstico precoce e a tratamento direcionado.

Outra lição diz respeito à comunicação com famílias. Quando o resultado da cultura revela E. coli sensível e a criança se mantém estável, a possibilidade de desospitalizar mais cedo passa a ser real; porém, essa decisão precisa vir acompanhada de orientação precisa sobre hidratação, controle de febre, retornos programados e sinais de alarme. Dessa maneira, o ciclo de cuidado se completa dentro e fora do hospital, reduzindo reinternações sem sacrificar segurança.

Formação de pesquisadores e legado institucional

Para as residentes envolvidas, o projeto valeu como imersão na fronteira entre assistência e produção de conhecimento. Paola sintetiza o percurso com uma frase que explicita o salto formativo: “O estudo me mostrou como a pesquisa aplicada pode gerar mudanças reais no cuidado pediátrico”. A afirmação se desdobra em exemplos: ela relata que, após a experiência, revisita fichas de febre sem foco com mais critério, valoriza a coleta adequada de exames e calibra a prescrição segundo diretrizes que ela própria ajudou a aprimorar.

O impacto, entretanto, não se limita à trajetória individual das pesquisadoras. Ao disponibilizar dados sólidos sobre prevalência bacteriana e resistência, o levantamento abastece discussões sobre política de antimicrobianos no âmbito do hospital e fornece base para ciclos de ensino que envolvem desde estudantes até pediatras experientes. O reconhecimento no Prêmio  Pensi, por sua vez, reforça a relevância de programas de residência que estimulam a investigação clínica e reconhecem seus resultados tangíveis.

Do ponto de vista institucional, a adoção de protocolos respaldados por evidência interna consolida a cultura de qualidade e de vigilância microbiológica. Com o tempo, a prática de coletar, analisar e retroalimentar dados tende a se disseminar para outras linhas de cuidado, como pneumonias ou quadros gastrointestinais graves. Dessa forma, o estudo sobre ITU torna‑se paradigma de um método que combina observação sistemática, análise crítica e implementação rápida de melhorias.

Ao fim da jornada investigativa, resta uma percepção clara entre os participantes: compreender a realidade local é condição indispensável para proteger antibióticos valiosos, evitar escaladas de resistência e oferecer às crianças o melhor prognóstico possível. Os números obtidos não são estatísticas frias; são chamados à ação — a ação cautelosa, fundamentada, que deriva de quem enxerga na microbiologia não um obstáculo abstrato, mas a face concreta dos microorganismos que habitam cada frasco de urina.

Correa, Leticia Santos; Suhet, Paola Romani Ferreira; Silva, Edina Mariko Koga da; Andrade, Maria Cristina de; “INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO NA INFÂNCIA: ANÁLISE DE 933 PACIENTES ATENDIDOS UM HOSPITAL PEDIÁTRICO EM SÃO PAULO”, p. 188‑194. In: Anais do 7º Congresso Internacional Sabará‑Pensi de Saúde Infantil. São Paulo: Blucher, 2024. ISSN 2357‑7282, DOI 10.5151/sabara2024‑3022

Por Rede Galápagos

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