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Estudo retrospectivo oferece evidências para refinar protocolos de antibioticoterapia na infância. As médicas residentes Letícia Santos Corrêa e Paola Romani Ferreira Suhet, autoras do estudo, conquistaram o terceiro lugar no Prêmio Pensi
Poucos quadros infecciosos se apresentam de modo tão traiçoeiro na infância quanto a infecção do trato urinário (ITU). À primeira vista, uma febre sem explicação ou um choro persistente podem parecer episódios banais, porém escondem um risco de comprometimento renal silencioso caso o diagnóstico demore. Com essa preocupação, as médicas residentes Letícia Santos Corrêa e Paola Romani Ferreira Suhet mergulharam no prontuário de 933 crianças atendidas ao longo de 2022 no Sabará Hospital Infantil, em São Paulo. O esforço investigativo — reconhecido com o terceiro lugar na categoria Residentes do 5º Prêmio Pensi de Pesquisa em Saúde Infantil — resultou num retrato minucioso da realidade microbiológica local e numa revisão imediata de protocolos de antibioticoterapia. “A sistematização foi um dos grandes diferenciais do trabalho, permitindo gerar dados confiáveis com alto potencial de aplicabilidade clínica”, avalia Paola, que conduziu a triagem dos registros ao lado da colega.
Do ponto de vista metodológico, o estudo adotou um desenho retrospectivo rigoroso. Todas as variáveis clínicas, laboratoriais e de imagem foram extraídas segundo um protocolo padronizado e depois organizadas na plataforma REDCap. A dupla de residentes assumiu a fase mais árdua, aquela que exige inspeção cuidadosa de cada documento digital, linha por linha. Esse trabalho manual, reforçado por tutoria metodológica da equipe de pesquisa do Instituto Pensi, assegurou a consistência dos dados tanto na origem quanto no tratamento estatístico subsequente. “Discutimos cada resultado com rigor metodológico, ponderando não apenas o que os dados mostram, mas também aquilo que silenciam”, observa a autora, apontando para um aprendizado que transcende tabelas de prevalência: a leitura crítica como dívida permanente do pesquisador clínico.
Os números coletados são inequívocos. Entre os 933 episódios documentados, Escherichia coli despontou como agente dominante, isolada em 57,3% das uroculturas positivas — proporção que confirma linhas gerais da literatura, mas, sobretudo, serve de bússola para a escolha de esquemas empíricos iniciais. A prevalência de refluxo vesicoureteral em 15,6% das crianças submetidas à uretrocistografia miccional realça o peso das malformações anatômicas na história natural da doença. Já a taxa global de internação, de 11,4%, reflete maior gravidade nos pacientes com comorbidades ou alterações estruturais concomitantes.
Outro ponto sensível emerge da análise do tempo de prescrição. Em parcela expressiva dos casos, a primeira dose de antibiótico precedeu a coleta da urocultura, prática arriscada que pode mascarar patógenos e inflar índices de resistência. “Esse dado reforça a necessidade de um olhar clínico atento e da coleta adequada da urocultura antes da primeira dose de antibiótico”, destaca Paola. O lembrete ganha peso numa conjuntura em que o arsenal terapêutico se estreita diante do avanço global de cepas multirresistentes.
A equipe quantificou a sensibilidade dos microorganismos a duas moléculas largamente usadas em pediatria: amoxicilina associada a clavulanato e cefuroxima. A resistência ficou em 6% para a primeira combinação e 8,6% para a segunda. Embora relativamente baixos, esses percentuais acendem a luz amarela: a eficácia atual não garante validade indefinida. O estudo sugere revisões periódicas, capazes de antecipar mudanças na fauna bacteriana e evitar falhas de cobertura. Nesse sentido, um dos frutos imediatos foi a elaboração de um protocolo institucional de antibioticoterapia empírica. A fórmula nasce de dentro para fora, ajustada à flora hospitalar do Sabará e apta a evoluir conforme novos ciclos de vigilância se consolidem.
A discussão sobre profilaxia não se encerra nas escolhas farmacológicas. Há também um recado sobre tempos e modos de seguimento. Em lactentes que estreiam no quadro apenas com febre, a indicação de exames de imagem depende agora de critérios mais nítidos, ancorados na experiência local. O mesmo vale para decisões acerca do encaminhamento ao especialista em nefrologia ou cirurgia: padrões de recorrência, presença de refluxo e idade de apresentação passaram a ser considerados em grades de risco mais granulares.
No cenário agitado do pronto atendimento pediátrico, reconhecer sinais discretos de ITU pode ser decisivo. Febre alta sem localização, irritabilidade e recusa alimentar em bebês pequenos figuram como motivos de cateterismo vesical para coleta de urina, mesmo quando a queixa urinária clássica ainda não se manifesta. Esse conjunto de sintomas ganhou ênfase após o estudo, pois emergiu como a moldura clínica predominante nos casos confirmados. Além disso, dados mostram que crianças já treinadas para controle esfincteriano podem regressar temporariamente à urgência ou ao escape urinário — indícios que, se forem apreciados a tempo, conduzem a diagnóstico precoce e a tratamento direcionado.
Outra lição diz respeito à comunicação com famílias. Quando o resultado da cultura revela E. coli sensível e a criança se mantém estável, a possibilidade de desospitalizar mais cedo passa a ser real; porém, essa decisão precisa vir acompanhada de orientação precisa sobre hidratação, controle de febre, retornos programados e sinais de alarme. Dessa maneira, o ciclo de cuidado se completa dentro e fora do hospital, reduzindo reinternações sem sacrificar segurança.
Para as residentes envolvidas, o projeto valeu como imersão na fronteira entre assistência e produção de conhecimento. Paola sintetiza o percurso com uma frase que explicita o salto formativo: “O estudo me mostrou como a pesquisa aplicada pode gerar mudanças reais no cuidado pediátrico”. A afirmação se desdobra em exemplos: ela relata que, após a experiência, revisita fichas de febre sem foco com mais critério, valoriza a coleta adequada de exames e calibra a prescrição segundo diretrizes que ela própria ajudou a aprimorar.
O impacto, entretanto, não se limita à trajetória individual das pesquisadoras. Ao disponibilizar dados sólidos sobre prevalência bacteriana e resistência, o levantamento abastece discussões sobre política de antimicrobianos no âmbito do hospital e fornece base para ciclos de ensino que envolvem desde estudantes até pediatras experientes. O reconhecimento no Prêmio Pensi, por sua vez, reforça a relevância de programas de residência que estimulam a investigação clínica e reconhecem seus resultados tangíveis.
Do ponto de vista institucional, a adoção de protocolos respaldados por evidência interna consolida a cultura de qualidade e de vigilância microbiológica. Com o tempo, a prática de coletar, analisar e retroalimentar dados tende a se disseminar para outras linhas de cuidado, como pneumonias ou quadros gastrointestinais graves. Dessa forma, o estudo sobre ITU torna‑se paradigma de um método que combina observação sistemática, análise crítica e implementação rápida de melhorias.
Ao fim da jornada investigativa, resta uma percepção clara entre os participantes: compreender a realidade local é condição indispensável para proteger antibióticos valiosos, evitar escaladas de resistência e oferecer às crianças o melhor prognóstico possível. Os números obtidos não são estatísticas frias; são chamados à ação — a ação cautelosa, fundamentada, que deriva de quem enxerga na microbiologia não um obstáculo abstrato, mas a face concreta dos microorganismos que habitam cada frasco de urina.
Correa, Leticia Santos; Suhet, Paola Romani Ferreira; Silva, Edina Mariko Koga da; Andrade, Maria Cristina de; “INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO NA INFÂNCIA: ANÁLISE DE 933 PACIENTES ATENDIDOS UM HOSPITAL PEDIÁTRICO EM SÃO PAULO”, p. 188‑194. In: Anais do 7º Congresso Internacional Sabará‑Pensi de Saúde Infantil. São Paulo: Blucher, 2024. ISSN 2357‑7282, DOI 10.5151/sabara2024‑3022
Por Rede Galápagos
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O conteúdo integral desta e de outras pesquisas selecionadas pode ser acessado neste link: 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil – Blucher Medical Proceedings
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