PESQUISAR
Um véu de poluição atmosférica cobre a silhueta da cidade de São Paulo. Em entrevista à newsletter Notícias da Saúde Infantil, os geógrafos Lígia Vizeu Barrozo e William Cabral mostram por que o clima e seus impactos nas crianças estão cada vez mais no radar dos profissionais de saúde infantil e explicam como a Geografia da Saúde avança, integrando ciências e tecnologias — como nos estudos com inteligência artificial que preveem internações com base em dados ambientais. [Foto: Paulisson Miura/Wikimedia Commons/File:Atmosfera (São Paulo, SP, Brasil) (16113540921).jpg]
O estudo da relação entre o ambiente e a saúde humana é um campo de pesquisa fundamental e objeto de atenção cada vez maior, especialmente quando se trata da saúde infantil. Mudanças climáticas, poluição, urbanização desordenada, fatores que impactam diretamente a vida das crianças, são o foco dos estudos da professora Lígia Vizeu Barrozo, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), e do geógrafo William Cabral, pesquisador do Instituto PENSI e do Sabará Hospital Infantil. Ambos se dedicam à Geografia Médica e da Saúde, uma área que explora as complexas interações entre o espaço geográfico e a saúde humana. Ambos farão exposições na tarde da sexta-feira, 4 de outubro de 2024, segundo dia do 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil. William falará da sua experiência com uso de IA e Big Data na previsão de atendimento a doenças respiratórias associadas à poluição. Lígia trará alguns dados muito reveladores ao apresentar o que se sabe até agora no rastreio da violência infantil, projeto que desenvolve em parceria com as secretarias de saúde.
Figura de destaque na Universidade de São Paulo desde 2006, Lígia lidera um grupo de estudos no Laboratório de Cartografia do Departamento de Geografia da FFLCH e no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da universidade, onde coordena o grupo de estudos Espaço Urbano e Saúde. Ela se dedica a investigar de que modo fatores como clima, poluição e urbanização influenciam a saúde das populações. Com um olhar detalhista e metodologias inovadoras, Lígia integra técnicas de geoprocessamento e análises espaciais para entender os impactos ambientais na saúde, especialmente entre os grupos mais vulneráveis, como crianças e idosos. Em sua entrevista à newsletter Notícias da Saúde Infantil, a professora compartilhou a lembrança de uma curiosa experiência pessoal recente que ilustra a globalização desses problemas: ao desembarcar no aeroporto de Roma, ficou surpresa ao encontrar um cartaz sobre dengue, uma doença que até pouco tempo atrás estava confinada a regiões tropicais. Um sinal de alerta quanto à expansão global de doenças relacionadas ao clima.
William Cabral começou sua jornada acadêmica tendo Lígia como orientadora de seu mestrado em 2012, aprofundando-se em estudos de hanseníase na Bahia, e depois seguiu para o doutorado, quando analisou os impactos da urbanização na saúde respiratória infantil em São Paulo. Hoje, ele é um dos principais pesquisadores do Instituto PENSI, onde aplica inteligência artificial para prever surtos de doenças respiratórias com base em variáveis ambientais. William desenvolveu uma plataforma inovadora que integra dados de poluição, umidade e temperatura a registros hospitalares, ajudando na gestão proativa das internações e tratamentos no Sabará Hospital Infantil. Sua pesquisa é um exemplo de como o uso da tecnologia pode transformar a saúde e oferecer respostas aos desafios impostos pelas mudanças climáticas.
Ao longo da entrevista, Lígia e William discutem questões cruciais, como a falta de áreas verdes e espaços seguros para crianças em cidades grandes, e como a poluição do ar impacta diretamente a saúde infantil. Eles também destacam as desigualdades no acesso aos serviços de saúde, revelando como as populações mais pobres e as regiões mais afastadas sofrem de forma desproporcional as consequências das mudanças climáticas. Com suas pesquisas, Lígia e William estão na vanguarda de um movimento que busca trazer mais consciência e ação para um problema que está se tornando cada vez mais urgente: a proteção da saúde infantil em um mundo que enfrenta mudanças ambientais aceleradas.
Notícias da Saúde Infantil — Como vocês definiriam a Geografia Médica e da Saúde para entendimento de um público mais amplo e quais são os principais objetivos desse campo de estudos?
Lígia Vizeu Barrozo — A Geografia Médica e da Saúde é um campo interdisciplinar que investiga como o ambiente afeta a saúde das populações. Ela busca entender, por exemplo, como o clima e a urbanização influenciam a prevalência de doenças como a dengue ou condições respiratórias. Um exemplo prático que me impressionou foi quando vi um cartaz sobre dengue no aeroporto de Roma, alertando os viajantes sobre os sintomas e riscos da doença. Isso evidencia como problemas antes restritos a regiões tropicais, como o Brasil, já estão se espalhando para lugares inesperados devido às mudanças climáticas e à mobilidade global.
William Cabral — A Geografia Médica busca integrar dados ambientais e sociais ao contexto da saúde. Nosso trabalho visa identificar relações de causa e efeito entre variáveis como poluição, temperatura e saúde, aplicando esses conhecimentos em políticas públicas e intervenções médicas. Por exemplo, utilizamos modelos de inteligência artificial para prever surtos de doenças respiratórias com base em dados ambientais, facilitando ações preventivas.
Notícias da Saúde Infantil — Quais os principais desafios geográficos que afetam a saúde infantil nas áreas urbanas e como a localização na cidade influencia a saúde de crianças e adolescentes?
Lígia Vizeu Barrozo — Nas áreas urbanas, a poluição do ar é um dos maiores desafios, especialmente em cidades como São Paulo, onde crianças são frequentemente hospitalizadas com problemas respiratórios. A localização dentro da cidade também importa: bairros mais próximos de grandes vias e áreas industriais têm níveis mais altos de poluição, o que exacerba as condições de saúde. Além disso, a falta de áreas verdes e locais seguros para brincar contribui para o sedentarismo e outros problemas de saúde em crianças. Em um estudo específico, observamos que crianças em bairros com menos espaços verdes têm índices mais altos de obesidade e asma.
William Cabral — No projeto que realizamos no Sabará Hospital Infantil, descobrimos que cerca de 80% dos atendimentos pediátricos estavam relacionados a doenças respiratórias. Analisamos dados ambientais como níveis de poluição e umidade e notamos que mesmo pequenas variações diárias nesses fatores influenciam diretamente a taxa de internações.
Notícias da Saúde Infantil — William, pode colaborar com algumas perguntas?
William — Como a desigualdade socioeconômica e o acesso aos serviços de saúde influenciam a saúde infantil entre as diferentes regiões do país?
Lígia Vizeu Barrozo — A desigualdade no acesso aos serviços de saúde é evidente quando comparamos regiões do país. Cidades muito pequenas não comportam hospitais e unidades especializadas, obrigando as famílias a se deslocarem para centros maiores. No estudo de hanseníase na Bahia, conduzido por William, ficou claro que o acesso limitado aos serviços de diagnóstico e tratamento em áreas rurais resultou em diagnósticos tardios e complicações evitáveis. Já em cidades maiores, como São Paulo, a distribuição das unidades básicas de saúde é melhor, mas ainda assim há uma carência de qualidade em muitas áreas periféricas.
Notícias da Saúde Infantil — Como as mudanças climáticas afetam a saúde, tanto local quanto globalmente, e como isso se manifesta em regiões mais vulneráveis?
Lígia Vizeu Barrozo — As mudanças climáticas têm impactos diretos e indiretos na saúde. Ondas de calor, que já se tornaram frequentes em São Paulo, aumentam a incidência de desidratação em crianças e o risco de eventos cardiovasculares como acidente vascular cerebral em idosos. As ondas de frio aumentam os problemas respiratórios e o risco de infarto do miocárdio. Além disso, inundações causadas por chuvas intensas levam a um aumento de doenças transmitidas pela água e por vetores, como leptospirose e dengue. No Sul do Brasil, as recentes enchentes mostraram como desastres naturais agravam as condições de saúde, especialmente onde há falta de infraestrutura adequada e de sistemas de prevenção
William Cabral — Com os dados que coletamos, identificamos que a exposição a altas concentrações de poluentes está associada a um aumento imediato de atendimentos por doenças respiratórias. Essa relação é ainda mais crítica em áreas próximas a focos de incêndio e a regiões onde a cobertura vegetal é escassa, o que amplifica os efeitos negativos na saúde.
William Cabral — Lígia, qual é o impacto da urbanização acelerada na saúde infantil, especialmente nas megacidades dos países em desenvolvimento?
Lígia Vizeu Barrozo — A urbanização acelerada tem levado à verticalização e à expansão em áreas naturais protegidas, aumentando o efeito das ilhas de calor e da densidade populacional sem a contrapartida de infraestrutura adequada. Em São Paulo, por exemplo, o aumento de prédios próximos a grandes eixos de transporte, conforme permitido pelo plano diretor, não foi acompanhado pela criação de espaços verdes suficientes. Isso tem um impacto direto na saúde infantil, que se reflete em problemas como sedentarismo, doenças respiratórias e saúde mental.
Notícias da Saúde Infantil — William, quais são os últimos projetos desenvolvidos por vocês no PENSI?
William Cabral — Nosso projeto mais recente no PENSI utiliza inteligência artificial para prever demandas de atendimento e internações por doenças respiratórias no Sabará Hospital Infantil. Desenvolvemos uma plataforma que integra dados diários de poluição, temperatura e umidade a registros hospitalares para criar modelos preditivos que podem prever, com até 90 dias de antecedência, picos de atendimento. Essa plataforma não só ajuda na alocação de recursos, mas também permite intervenções preventivas mais eficazes.
Lígia Vizeu Barrozo — William, gostaria de saber quais são os últimos dados ou tendências que você tem observado em seus projetos recentes.
William Cabral — Recentemente, no projeto que conduzimos, identificamos que o impacto da baixa umidade relativa do ar e do material particulado é significativo. Um dado interessante é que a exposição a poluentes no mesmo dia já mostra um efeito claro nas taxas de atendimento hospitalar. Desenvolvemos algoritmos que conectam esses dados ambientais com o fluxo de pacientes no Sabará, mostrando que picos de poluição têm um impacto quase imediato. Esses insights são fundamentais para prever demandas e ajustar estratégias de saúde pública em tempo real.
Notícias da Saúde Infantil — Como vocês veem o futuro dessa área de estudo?
Lígia Vizeu Barrozo — A Geografia da Saúde está em expansão, especialmente com o uso de tecnologias de geoprocessamento e análise de dados espaciais. A possibilidade de mapear e visualizar dados de saúde em tempo real abre novas oportunidades para intervenções precisas, como políticas de saúde pública voltadas para áreas específicas com altas taxas de doenças. A interdisciplinaridade continuará a ser uma característica fundamental, aproximando geógrafos, médicos e profissionais de saúde pública para criar soluções integradas.
William Cabral — Vejo um futuro promissor para a integração da geografia com a saúde, especialmente em resposta aos desafios das mudanças climáticas. A visibilidade das ciências geográficas aumentará à medida que suas aplicações práticas em saúde pública se tornarem mais reconhecidas. Com as mudanças climáticas impactando diretamente a vida nas cidades, o papel dos geógrafos em prever e mitigar esses efeitos será cada vez mais essencial.
Por Rede Galápagos
Leia mais:
7º Congresso Sabará-PENSI terá programação especial para residentes de pediatria
Espaço Urbano e Saúde — Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo
O meio ambiente e o comportamento nas cidades são desafios para a pediatria
Como fica a saúde das crianças diante da emergência climática?