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Confira abaixo a entrevista exclusiva do psiquiatra-chefe e diretor do Instituto da Infância na Universidade Tulane, Dr. Charles Zeanah, para o livro: “O SABER PARA A SAÚDE INFANTIL – OS PRIMEIROS DEZ ANOS DO INSTITUTO PENSI”
De cara, a linguagem de William Faulkner, um dos maiores escritores norte-americanos, parece fácil. Mas dali a pouco o leitor se vê mergulhado em histórias diferentes. Um mesmo fato é contado por vários personagens, e a narrativa funciona igual na psicanálise: Faulkner puxa um fio solto da natureza humana e vai revelando outros caminhos, e como cada pessoa tem muito mais coisas por trás dela.
Antes de ser um dos maiores nomes da psiquiatria infantil nos Estados Unidos, o dr. Charles Zeanah cursou literatura inglesa na faculdade. Faulkner, seu autor favorito, foi tema da sua tese. Estava começando ali sua vocação para a psiquiatria. Na verdade, desde menino ele era fascinado pelas histórias das pessoas e pelo porquê das suas escolhas. Já médico, entendeu que dava, sim, para fazer alguma coisa nos primeiros anos de vida e tentar mudar o roteiro de quem conhece a dor desde muito cedo.
“Na psiquiatria infantil nós focamos nos fatores que podem determinar as trajetórias das crianças, o que está por trás, e como podemos ajudá-las a sair das trajetórias infelizes e seguir por histórias mais felizes para o seu desenvolvimento”, ele diz.
Como professor de psiquiatria e pediatria e diretor do Instituto da Criança da Universidade Tulane, o dr. Charles conduz importantes pesquisas sobre os efeitos de abuso, negligência, violência no desenvolvimento das crianças. Ganhou um sem-número de prêmios, é o editor de um Manual de Saúde Mental Infantil (Handbook of Infant Mental Health), referência na área de saúde, e coautor, com Charles Nelson e Nathan Fox, do BEIP, na Romênia, projeto que pautou o EI-3, a versão brasileira tocada pelo PENSI.
Você esteve recentemente no Brasil para o lançamento do projeto EI-3. Fale um pouco sobre o momento atual do projeto.
Charles Zeanah — Fizemos o lançamento oficial no dia 28 de junho, em São Paulo, e acredito que em breve vamos conseguir acessar as crianças. Estamos muito próximos, depois de um longo trabalho. Num primeiro momento devemos trabalhar com 150 crianças. Muita coisa teve de ser feita, e a pandemia foi um obstáculo importante que atrasou o cronograma, mas estamos muito empolgados.
Para vocês, cientistas que criaram o BEIP em 2000, qual a importância de ter um segmento do projeto no Brasil?
Charles Zeanah — Acho que existem duas respostas a essa pergunta. A primeira diz respeito à política pública, porque o Brasil é um país com um grande número de abrigos, mas, embora o acolhimento familiar exista no país e seja previsto em lei, a parcela de famílias acolhedoras é muito pequena. O projeto vai possibilitar responder a esta pergunta fundamental para a política pública: qual o melhor jeito de cuidar das crianças abandonadas no Brasil?
A segunda resposta é sobre as diferenças entre o nosso trabalho com os grupos de cuidadores do Brasil e com os grupos de cuidadores da Romênia. Nossa experiência naquele país mostrou o impacto do estudo no formato de cuidados com as crianças. O que a gente fez lá como intervenção foi a criação do serviço de família acolhedora, que não existia no país. Começamos ali literalmente do zero, criamos o serviço, treinamos as pessoas. No Brasil vamos proporcionar a formação dos cuidadores nos abrigos para potencializar os cuidados que as crianças recebem. Fizemos uma espécie de treinamento em vídeo, um coaching de como trabalhar o apego entre os cuidadores e as crianças. Como estabelecer essas configurações, como determinar o padrão de cuidados, isso varia em cada país e é muito importante.
Quando você esteve no Brasil pela primeira vez? E como foi a decisão de escolher o país para o projeto?
Charles Zeanah — Eu já conhecia o Brasil, aonde fui há 25 anos para um meeting em Canela; lembro que era uma cidade pequena no Sul. Para esse projeto, acho que fui pela primeira vez uns quatro anos atrás. Tivemos muito trabalho, questões logísticas, o governo mudou, teve a pandemia… Nós consideramos alguns países ao redor do mundo antes de escolher o Brasil, e uma das razões da escolha foi graças ao Rockefeller Center (Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos da Universidade Harvard), que fica em São Paulo. Meu colega Chuck (Charles Nelson, um dos criadores do projeto, diretor da área de pesquisa em neurodesenvolvimento da Harvard) já havia trabalhado no Brasil, conhecia o pessoal do Rockefeller Center, e isso ajuda muito para a gente entender as questões locais, saber quem são as pessoas certas com quem falar, ter acesso a todo tipo de coisa. Um fator realmente importante que nos ajudou a escolher o Brasil foi a receptividade dos juízes. Isso me surpreendeu. Desde o início, eles entenderam a importância de fazer no país um estudo que traz tantas evidências científicas. No Brasil o sistema legal de proteção à criança não é muito diferente do que é nos Estados Unidos, ao contrário da Romênia. Quando estivemos lá em 2000, era um país saído de uma ditadura com grandes sequelas.
Qual foi o seu maior choque nos orfanatos da Romênia?
Charles Zeanah — A indiferença dos cuidadores. Como eram poucos funcionários para muitas crianças, eles desenvolveram um método de não ter nenhum envolvimento emocional com elas. Quando era hora da recreação, os cuidadores conversavam entre si e nem olhavam para as crianças. Eu me perguntava como eles conseguiam voltar para casa e, imagino, agir de um modo completamente diferente com seus filhos.
E as principais descobertas?
Charles Zeanah — Que o tempo conta. O momento da intervenção conta. Quanto antes a criança for para a família acolhedora, melhor para o seu desenvolvimento. As crianças podem se recuperar de forma significativa, mesmo que não seja completamente. Outra coisa muito importante é a qualidade da relação afetiva que a criança tem com seu cuidador, tanto nas famílias acolhedoras como nas instituições. Também para aquelas que ficam nos abrigos a qualidade do relacionamento é importante para evitar futuras psicopatologias.
Você vê semelhanças entre o que foi analisado sobre as crianças institucionalizadas na Romênia e o que os pesquisadores sabem de informação sobre as crianças em abrigos no Brasil?
Charles Zeanah — Nós ainda não coletamos os dados no Brasil, então não temos uma base de análise. Em termos de observação, de estudos já feitos no mundo, existem algumas características comuns das crianças que crescem em instituições e um risco maior de problemas no desenvolvimento delas. Pode haver maior ou menor risco, mas sempre há algum risco associado à vida nos abrigos. O que posso dizer é que há uma grande diferença nos próprios abrigos: na Romênia as instituições eram muito maiores e muito menos favoráveis no cuidado com as crianças. No Brasil vamos estimular os cuidadores também nas famílias acolhedoras.
No Brasil a lei não permite que as famílias acolhedoras adotem as crianças permanentemente. Isso pode alterar algo no estudo?
Charles Zeanah — Pode influenciar, sim. Tirar a criança de uma situação em que está sendo cuidada e levar para outra pode trazer algum risco emocional para ela, e essa é uma razão por que nos Estados Unidos acontece o contrário. Lá as famílias acolhedoras são encorajadas a adotar. Porém esse é o sistema legal no Brasil; temos de lidar com isso, e é um risco que pode ser mitigado, tratado com todo cuidado.
Eu gostaria de saber sobre o seu foco em distúrbios do apego nas crianças. Como começou seu interesse por isso?
Charles Zeanah — Desde o início da minha carreira, eu sempre fui muito interessado em melhorar a vida das crianças pequenas, em saber quais as experiências que tinham afetado sua capacidade de ter laços emocionais. Sou psiquiatra e no meu trabalho clínico vi muitas crianças que sofreram abusos e dificuldades terríveis, e era claro para mim que muitas delas tiveram problemas de apego, de quebra de confiança pelas adversidades que vivenciaram. Uma boa base emocional é protetora, protege de outros fatores de risco, as crianças têm de confiar nos seus cuidadores, se sentir amadas. Eu sempre quis entender como ajudar as crianças a se recuperar e a se proteger.
Como você pessoalmente lida com tanta dor, vendo casos terríveis de abuso e violência em crianças na sua rotina de trabalho?
Como se protege? Charles Zeanah — Vou responder duas coisas. A primeira é que ter a oportunidade de fazer o possível para essas crianças se recuperarem das experiências tão duras é muito recompensador. Seja tirando as crianças da situação de abuso, seja mudando seus relacionamentos para outras relações mais saudáveis, seja fortalecendo o seu relacionamento com os cuidadores. Gosto de valorizar a importância não só do tratamento, mas também da possibilidade de, com o nosso trabalho, influenciar decisões legais do sistema de proteção à saúde da criança. Poder ajudar em políticas públicas me traz muita satisfação. A segunda e mais importante é que esse não é um trabalho solitário. Somos um time na Tulane (Tulane Infant Team, uma colaboração entre a faculdade Tulane e o Departamento de Serviços para a Criança e Família), trabalhamos há mais de 30 anos, é uma grande rede de apoio. Estamos juntos há muito tempo porque é um trabalho intenso mas que nos satisfaz demais. Mas claro que também, pessoalmente, tento manter meu bem-estar.
Você já disse que seu interesse pela psiquiatria começou com a literatura. Os romances foram um estímulo para tentar compreender a mente humana?
Charles Zeanah — Sou fascinado pelas histórias das pessoas e a psiquiatria é feita de histórias, das experiências que levam alguém a ser quem é, das suas influências ao longo da vida. Na psiquiatria infantil nós somos interessados na trajetória das crianças: quais fatores promovem trajetórias felizes e quais fatores levam a trajetórias infelizes e como podemos ajudá-las a sair das trajetórias infelizes e seguir por caminhos mais felizes para o seu desenvolvimento. São histórias, assim como os pais se tornaram quem são, ou como podem se tornar o que gostariam de ser, e o mesmo acontece com as crianças.
Você é o editor do Handbook of Infant Mental Health (Manual da Saúde Mental Infantil), a grande referência na área de saúde mental das crianças para os profissionais de saúde. As edições do livro são sempre atualizadas com as novas descobertas científicas. Já existe alguma novidade na área de saúde mental das crianças depois da pandemia?
Charles Zeanah — É um pouco cedo para dizer. Essa pergunta tem muitas camadas. Existem os efeitos biológicos da covid-19 a longo prazo — isso é uma área importante. Outra coisa muito clara é que o stress econômico e o do isolamento afetaram desproporcionalmente as classes menos favorecidas. Toda essa pressão tem consequências, e as taxas de problemas de saúde mental devem subir dramaticamente. Mas ainda não chegamos ao final. Precisamos de tempo para estudar tudo isso.
Por Rede Galápagos