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Com frequência mães e pais relatam que a sua criança “só vive de macarrão”, contudo uma análise de 237 prontuários conduzida pela nutricionista Raquel Ricci no Instituto Pensi mostra que o repertório real de alimentos é, em média, o dobro do registrado na entrevista inicial. O achado reposiciona a ansiedade adulta como variável clínica e sugere novos critérios para classificar a seletividade infantil
A porta do consultório mal se fecha e a frase irrompe: “Doutora, ele não come nada”. Às vezes o pronome muda — “ela”, “eles” —, mas a narrativa se repete com sotaques diferentes. Desde 2014, cada responsável que atravessa o corredor do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares (Cenda), em São Paulo, recebe um formulário de três colunas. A tarefa parece simples: escrever tudo o que a criança aceita, registrar alimentos que já fizeram parte do cardápio, e não fazem mais, e listar o que ela recusa de forma absoluta. O Inventário Alimentar, criado para ganhar tempo em consultas multipartes que envolvem pediatra, nutricionista e fonoaudióloga, virou depósito involuntário de pistas sobre a relação entre percepção adulta e realidade do prato.
“Eu sempre conferia o inventário com o registro alimentar de 24 horas, além de investigar todos os hábitos alimentares e de vida da criança e sua família”, lembra Raquel Ricci, nutricionista formada pela USP de Ribeirão Preto e há sete anos à frente dos atendimentos no Instituto Pensi. “Começou a ficar claro que havia mais comida na história do que no papel.” A intuição virou pergunta de pesquisa em 2017, quando Letícia Ribeiro, nutricionista que fazia parte do serviço, resolveu, então, analisar 119 inventários de atendimentos realizados de 2014 a 2017 e observar o tamanho do sub-relato materno quando era solicitado o registro dos alimentos aceitos pelos filhos; os achados viraram um artigo encabeçado por Letícia Ribeiro e finalizado por Raquel Ricci.
Como continuidade, e importância desses achados, a pesquisa não parou por aí e se estendeu até 2023, agora com 237 inventários; além da percepção materna e consumo real, a partir da análise profissional, informações sobre as características sensoriais dos alimentos, categoria alimentar, comparação entre faixas etárias, entre outros pontos, foram analisados.
O desenho foi descritivo, sem intervenção. Durante cada atendimento, Ricci esmiuçou o registro alimentar e, apoiada em perguntas de contexto — o que acontece na escola, na casa dos avós, em festas —, anotava alimentos omitidos. “Se a família escrevia ‘biscoito’, eu perguntava quais biscoitos; se colocava ‘pipoca’, conferia salgadinho, algum snack caseiro, etc.”, explica. A lista profissional, gerada ao fim da conversa, foi comparada à lista familiar inicial.
Os números foram eloquentes. Enquanto as famílias relataram média de 16,2 alimentos, a contagem completa subiu para 26,3, diferença que representa a razão de 2,16 mais alimentos consumidos, em média. Quando se comparam alimentos aceitos por faixa numérica, a subestimação é clara: 129 registros familiares (54,43%) relataram que seus filhos consumiam 15 ou menos alimentos; já no registro profissional essa porcentagem caiu para 14,77% (apenas 32 inventários). O valor extremo impressiona: Ricci já encontrou um caso em que a criança aceitava 18 vezes mais itens do que a mãe registrara. “É como se o olhar adulto congelasse naquilo que nunca dá briga, tamanha a preocupação de que algo a criança tem que comer”, diz a pesquisadora.
Do ponto de vista epidemiológico, as variáveis sexo e idade reproduziram tendência descrita na literatura: 61,2 % dos pacientes eram meninos, com pico de dificuldade entre os dois e os cinco anos.
Interpretações para o descompasso orbitam dois polos. O primeiro é fisiológico: rejeitar texturas duras e fibrosas pode proteger contra engasgos ou sabores amargos que, na evolução humana, sinalizavam toxinas. O segundo é relacional. “Cuidadores replicam o prato que garante paz à mesa”, afirma Ricci. Se o macarrão puro evita lágrimas, ele tende a aparecer noite após noite. A repetição vira zona de conforto para todos, mas embute armadilhas. Limitar opções dificulta saídas para restaurantes, viagens, aniversários — e amplifica a ansiedade cada vez que o cardápio foge do script.
Famílias com condutas autoritárias — “come tudo, senão a gente não vai sair” — ou permissivas — “o que você quer comer, então?” — prejudicam a construção e o aprendizado de uma boa relação com os alimentos, uma provável maior diversidade alimentar, além de um melhor estado nutricional, podendo evitar carências nutricionais e até o excesso de peso. Ambas as posturas empobrecem a exposição a novos sabores. “A gente precisa trabalhar a frustração dos pais tanto quanto a seletividade da criança”, observa a nutricionista.
Raquel, com o dr. José Luiz Setúbal, na cerimônia do Prêmio Pensi.
Profissionais costumam classificar a seletividade grave quando o repertório cai para 15 ou menos alimentos. O estudo mostra que a régua pode estar torta. Ricci propõe que mais do que considerar o quanto a criança come, em representação numérica, é fundamental considerar o que ela come, e como essas escolhas geram impactos — positivos ou negativos — em aspectos nutricionais e sensoriais na criança, e sociais e emocionais na criança e família. “Um menino que aceita 14 alimentos, mas são escolhas boas e de grupos variados, cresce, ganha peso adequadamente e come feliz, é muito diferente de uma menina que aceita 25, mas são limitados a poucos grupos, ou seja, come mais do mesmo, apresenta déficit calórico e é pressionada para comer diferente; esta precisa muito mais de intervenção”, resume.
Essa inteligência é devolvida às famílias já na primeira consulta. Em vez de carimbar “comedor difícil”, Ricci explica às famílias que todo alimento que a criança aceita deve ser considerado, mesmo que consuma de vez em quando e em menor quantidade, e que propor o consumo de novos alimentos não pode ser de forma aleatória; aspectos sensoriais dos alimentos é um ótimo ponto de partida. Quem devora biscoito de polvilho talvez tolere torrada; quem aceita pipoca pode querer experimentar salgadinho caseiro de grão-de-bico. Os avanços são graduais, mas cada pequena conquista baixa a tensão geral. “Suplementar ferro sem perguntar por que a criança não come alimentos-fonte, como carne e leguminosas, é enxugar gelo”, alerta.
Raquel (à direita) com o dr. Mauro Fisberg, coordenador e pesquisador do Cenda, e Priscila Maximino, coordenadora dos atendimentos e pesquisadora do Cenda, durante o 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil.
Outro flanco de investigação mira a prevalência masculina. Ricci atende dois meninos para cada menina, proporção que ecoa estudos internacionais mas ainda carece de explicação. Questões culturais — será que os meninos recebem mais atenção quando há um problema alimentar? — podem cruzar com traços neurobiológicos e até mesmo sensoriais — será que os meninos manifestam recusa alimentar por aspectos sensoriais de forma mais precoce ou preocupante? “Talvez estejamos diante de uma interseção entre cultura e neurociência”, arrisca.
Enquanto os artigos circulam entre revisores, a mudança já se instala no consultório. Raquel Ricci passou a encerrar cada devolutiva com a mesma orientação:
“Olhe primeiro o que há no prato antes de lamentar o que falta!”
O ajuste desloca a conversa de um território de culpa para um terreno de possibilidades. Quando os pais percebem que a lista de aceitação não é tão pequena, a criança sente a pressão diminuir — e, paradoxalmente, torna-se mais disposta a provar novidades. “O jantar volta a ser lugar de encontro, não de cobrança”, conclui a nutricionista.
Apesar de trabalhar num serviço de referência, Ricci insiste que o protocolo pode — e deve — ser adaptado à realidade de unidades básicas. Um profissional de saúde treinado para entrevistar, um registro alimentar acessível e um retorno compassivo já fariam diferença. “Tecnologia ajuda, mas a mudança começa na escuta”, diz, ecoando a missão do Instituto Pensi de promover saúde infantil em todas as dimensões, inclusive nas que não cabem numa tabela calórica.
Se a ciência confirmar o que 237 prontuários sugerem, talvez o primeiro passo para resolver a dificuldade de comer seja admitir que, muitas vezes, o prato invisível está bem mais cheio do que pensamos.
Ricci, Raquel; Nogueira, Luana; Maximino, Priscila; Sella, Karina Rizzardo; Paula, Nathalia Gioia de; Fisberg, Mauro; “PAIS SUBESTIMAM A METADE DOS ALIMENTOS ACEITOS POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DIFICULDADES ALIMENTARES”, p. 22 . In: Anais do 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil. São Paulo: Blucher, 2024.
ISSN 2357-7282, DOI 10.5151/sabara2024-2762
Por Rede Galápagos
O conteúdo integral das pesquisas selecionadas pode ser acessado neste link: 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil – Blucher Medical Proceedings
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