Pesquisa mostra como áudio sob medida pode amparar profissionais diante de dilemas éticos no cuidado infantil — explorando nova trilha de formação continuada para equipes de enfermagem. Na foto, Lucas  Thiago  Pereira  da Silva, Maiara Rodrigues dos Santos e Ana Carolina Reis di Gregório celebram o reconhecimento recebido na categoria Bioética.

A travessia pela pandemia expôs a tensão moral que ronda as unidades pediátricas. Entre protocolos rigorosos e o desejo de aliviar a dor de crianças gravemente doentes, enfermeiras e enfermeiros passaram a sentir, com frequência inédita, o peso de decisões nas quais vida, dignidade e limites tecnológicos se entrelaçam. Foi nesse terreno emocionalmente minado que o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Perdas e Luto (NIPPEL) da Escola de Enfermagem da USP encontrou o ponto de partida para um projeto ousado: converter a literatura científica sobre resiliência moral em um podcast capaz de caber no bolso e na rotina atribulada dos profissionais de saúde. Batizada de MORE (forma abreviada de moral resilience), a série de três episódios nasce dentro de um esforço e estudo maior, financiado pela Fapesp e liderado pela Profa. Dra. Regina Szylit , que trata da bioética em situações de fim de vida e contextos em que há decisões morais complexas. Ao conquistar o terceiro lugar na categoria Bioética no 5º Prêmio Pensi de Pesquisa em Saúde Infantil, além do reconhecimento, o projeto ganhou fôlego para chegar aos corredores onde se decidem, em silêncio, alguns dos dilemas mais difíceis da prática clínica.

Do sofrimento moral à resiliência
O conceito que sustenta a empreitada foi cunhado na literatura internacional há menos de duas décadas. Sofrimento moral descreve a angústia de quem sabe o que considera certo, mas se vê impedido — por hierarquia, escassez de recursos ou conflitos de valores — de agir conforme essa convicção. Na pediatria, o impacto se agrava: cada escolha envolve crianças que, na maioria das vezes, não podem decidir por si, além de famílias mergulhadas em expectativas, crenças e temores. Para o Prof. Dr. Lucas Thiago Pereira da Silva, que representou a equipe de pesquisa no prêmio, a resposta não é blindar o profissional, e sim fortalecê‑lo por dentro. “A resiliência moral é uma habilidade sociocognitiva”, explica. “Ela permite ao enfermeiro ressignificar a experiência, reconhecer fatores que limitam sua ação e encontrar caminhos éticos que preservem a própria saúde mental.”

Por que um podcast?
Quando a equipe mapeou tecnologias educacionais já empregadas em enfermagem, descobriu uma lacuna: poucos recursos alcançavam, de forma rápida e envolvente, quem trabalha em turnos noturnos ou permanece longe de ambientes formais de capacitação. O podcast surgiu como escolha natural e foi fruto da iniciação científica robusta da estudante de graduação em enfermagem – Ana  Carolina  Siqueira  Rodrigues, que foi bolsista Fapesp e se dedicou muito para que o podcast ganhasse seu valor e identidade. Ele dispensa telas ou salas de aula; bastam fones de ouvido e algum tempo de atenção entre plantões e em deslocamentos ou em intervalos breves. Inspirado na lógica de “microaprendizado”, o roteiro intercala conceitos, exemplos reais e exercícios de autorreflexão que podem ser executados em menos de 20 minutos. Assim, a proposta é que o podcast se posicione como companheiro de quem precisa refletir sobre práticas que nem sempre encontram espaço nas reuniões clínicas.

Jornada de avaliação

Cada etapa de produção foi submetida a critérios robustos de validação. O roteiro, elaborado pela equipe de pesquisa, composta por Lucas Thiago Pereira da Silva e pelas pesquisadoras Ana  Carolina  Siqueira  Rodrigues, Ana  Carolina  Reis  di  Gregório, Cibele  Valva  Saraiva, Regina Szylit e Maiara  Rodrigues  dos  Santos, orientadora de Lucas na ocasião do doutorado e de Ana na iniciação científica. O roteiro proposto passou pelo crivo de especialistas em bioética, clínica pediátrica e comunicação científica. O Índice de Validade de Conteúdo superou 0,78 em todos os domínios avaliados, enquanto o coeficiente AC2 de Gwet chegou a 0,86, sinal claro de concordância elevada sobre relevância, clareza e adequação pedagógica. A banca também revisou linguagem, ritmo dramático e aplicabilidade dos exercícios propostos — ajustes que vão da escolha de trilha sonora à maneira de apresentar estatísticas sensíveis sobre obstinação terapêutica.

Três atos, muitas vozes
O episódio inaugural descreve o que é sofrimento moral, como identificá‑lo e por que ele atinge com força quem atua no limiar entre esperança e finitude. Casos reais, adaptados para proteger identidades, ilustram conflitos como o momento de limitar suportes invasivos ou equilibrar autonomia dos pais com bem‑estar da criança. O segundo episódio mergulha nos fundamentos da resiliência: reconhecimento das próprias emoções, construção de redes de apoio, cultivo de repertório comunicativo e busca de sentido no trabalho. O terceiro fecha o arco narrativo apresentando ferramentas práticas — de reuniões de equipe orientadas a dilemas até estratégias de cuidado centrado na família — que podem ser reproduzidas em ambiente de alta pressão.

Para além dos fones
Embora pensada para enfermeiros, a proposta não se encerra nesse público. Lucas destaca o potencial do material para gestores que buscam promover cultura de segurança ética e para famílias que desejam compreender e melhorar processos de decisão compartilhada em pediatria. A equipe já discute, sob a liderança da professora e doutora Maiara Rodrigues dos Santos, um aplicativo que traduza parte do conteúdo para pais que enfrentam hospitalizações prolongadas. “Queremos fechar o ciclo: apoiar quem cuida e quem é cuidado”, resume o pesquisador, reforçando que a democratização de conceitos de bioética pode reduzir ruídos e tornar mais horizontais as conversas no leito.

Reconhecimento e próximos passos
A premiação no congresso Sabará‑Pensi foi recebida com entusiasmo pela equipe, sobretudo porque a enfermagem costuma ocupar menos espaço em rankings de pesquisa. Lucas informa que o valor financeiro do prêmio está sendo integralmente investido na finalização do podcast: gravação em estúdio, edição profissional e legendas para acessibilidade. A previsão é lançar a série até o início de 2026 em plataformas de streaming, com acesso gratuito. Paralelamente, o NIPPEL na  Escola de Enfermagem da USP prepara oficinas de escuta orientada, nas quais pequenos grupos debaterão cada episódio e criarão planos de ação ajustados às realidades das instituições parceiras.

O alcance de uma voz humana
A força do formato, argumenta o pesquisador, reside em algo que números não capturam por inteiro: a intimidade da voz. Quando um enfermeiro ouve, nas primeiras horas do plantão, a descrição de um cenário que reflete seu próprio cotidiano, sente‑se menos isolado. Décadas de estudos sobre aprendizado auditivo indicam que a combinação de narrativa, tons vocais e exemplos concretos facilita retenção de conteúdo e estímulo à reflexão. Ao inserir dados validados em formato coloquial, o podcast evita o jargão e o marketing, entregando ciência temperada pela experiência de quem vive o plantão noite adentro.

Semente de cultura ética
Se cumprir o cronograma, o projeto terá sido criado, testado e lançado em menos de dois anos — tempo curto para as engrenagens acadêmicas, mas decisivo para profissionais exaustos após a longa emergência sanitária. O impacto poderá ser medido em pesquisas futuras, e a equipe planeja coletar feedback qualitativo para aprimorar novos conteúdos. Contudo, mesmo antes dos primeiros downloads públicos, o projeto já influencia a formação de alunos de graduação, que acompanham etapas de produção em disciplinas optativas. Além de lerem artigos, esses estudantes participam, gravam pilotos e compreendem como a evidência se converte em cuidado.

Silva, Lucas Thiago Pereira Da; Rodrigues, Ana Carolina Siqueira; Gregório, Ana Carolina Reis di; Saraiva, Cibele Valva; Szylit, Regina; Santos, Maiara Rodrigues dos; “PODCAST EDUCATIVO NA DISSEMINAÇÃO DE EVIDÊNCIAS SOBRE DESENVOLVIMENTO DA RESILIÊNCIA MORAL POR ENFERMEIROS EM PEDIATRIA”, p. 66 . In: Anais do 7º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil. São Paulo: Blucher, 2024.
ISSN 2357-7282, DOI 10.5151/sabara2024-2854

Por Rede Galápagos

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O conteúdo integral das pesquisas selecionadas pode ser acessado neste link: 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil – Blucher Medical Proceedings

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