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A dra. Rosane Lowenthal explica por que mudar estruturas e capacitar docentes faz diferença para pessoas no espectro: “Não importa a gravidade do autismo, todas as pessoas têm o que oferecer para este mundo”
A pesquisadora Rosane Lowenthal, professora adjunta e vice-diretora do curso de medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, defende um princípio que inverte a lógica habitual sobre deficiência. Em lugar de avaliar o autismo como limitação intrínseca, ela atribui às barreiras físicas e sociais o peso maior. Sua tese desvia o foco da “incapacidade” para a obrigação que ambientes têm de acolher cada pessoa, em qualquer condição.
O livro O futuro do autismo descreve vários exemplos que sustentam essa postura. Uma criança sem fala encontra caminho para se expressar ao receber ferramentas de comunicação alternativa. Com uma simples prancha de figuras ou aplicativo, crises de frustração são reduzidas. Da mesma forma, o ambiente determina se alguém com mobilidade reduzida vai ou não vencer obstáculos, porque rampas e elevadores eliminam limitações que pareciam intransponíveis.
A dra. Lowenthal encara a educação como fator decisivo. Diagnose precoce, formação de professores e conscientização coletiva criam oportunidades de desenvolvimento, diminuindo estigmas associados ao autismo. Ela lembra o efeito do diálogo público sobre a síndrome de Down, a qual conquistou avanços gradativos de aceitação. O autismo, segundo a pesquisadora, segue trilha semelhante. Se o sistema de ensino, a família e o poder público assumirem compromissos, cada indivíduo no espectro poderá ocupar lugares de fato inclusivos. A seguir, trechos selecionados da entrevista publicada no livro.
Rosane Lowenthal — Sempre trabalhei com professores nas ONGs, desde o início dos anos 1990. Hoje estou numa, a Inclusive Todos. Nós fazemos capacitação em várias cidades do Brasil. A área da saúde tem de ter parceria com a escola; é nisso que eu acredito. Sem essa capacitação o professor fica perdido. Mas não é a saúde que diz como deve agir o professor. A ideia é o profissional de saúde trabalhar junto com a escola a melhor estratégia ao lidar com as crianças com deficiências, com autismo. Mas quem sabe educar é o professor.
Rosane Lowenthal — Depende de para quem é feita. Se a gente está falando com pediatras e profissionais de saúde, abordamos os sinais do autismo, quais os sintomas, como lidar. No caso de professores, como se despir de preconceitos, entender que temos de parar de dar valor ao ser humano no sentido de seres humanos piores ou melhores. Somos um pacote de potencialidades e de dificuldades e limitações. As escolas têm de entender isso, todos têm de entender isso. Anos atrás, quando meu filho com Down estava no ensino fundamental, a professora me perguntou qual era a minha expectativa em relação a ele. E eu comentei: “Que interessante. Tenho outro filho quase da mesma idade (Vitor, que é típico), e ninguém me pergunta quais as minhas expectativas em relação a ele”. Minha expectativa é que ele aprenda, que ele seja feliz na escola, que a escola seja dele. A mesma que a gente tem como mãe para qualquer criança que vai para a escola. O grande problema escolar para quem tem TEA não é a aprendizagem, mas a comunicação. Quem tem TEA muitas vezes não entende o que o professor está dizendo, e o professor não entende o que o aluno com TEA quer dizer. A grande questão é a gente trabalhar as habilidades da criança com TEA em vez de focar nas dificuldades dela.
Rosane Lowenthal — Existe o medo de que as outras crianças vão maltratar aquela com TEA. Ou o medo de que o filho com TEA vai agredir os outros. Muita gente não quer colocar o filho na escola regular porque acha que ele vai sofrer. É um mito. Vi isto tanto clinicamente como nos trabalhos científicos: as pessoas com autismo têm o direito ao sofrimento como qualquer outra. Isso também é autonomia.
Rosane Lowenthal — A grande virada da história é entender o conceito da deficiência, não importa o tipo: as deficiências estão mais nos ambientes do que nas pessoas. É preciso dar ajuda para alguém estar no mesmo lugar com condições iguais. Por exemplo: vou pegar um menino que não fala, mas tem um aplicativo que permite que ele se comunique. Ele não tem mais deficiência naquele lugar em que usa o aplicativo. Antes a deficiência era da pessoa, e a sociedade não tinha nada a ver com isso. Hoje é o meio que a faz ser deficiente ou não. A questão não é a pessoa, é a funcionalidade da pessoa. Se eu tenho um cadeirante que tem acesso para entrar num prédio com cadeira de rodas, se tem rampa, elevador, e nesse lugar ele não tem barreiras, então nesse lugar ele não tem deficiência. Ele está em igualdade de participação com os outros.
Rosane Lowenthal — Quando era um caso difícil às vezes o terapeuta falava: “Mas ele não consegue fazer nada”, e eu dizia que não é possível que uma pessoa não consiga fazer nada. Sempre há alguma coisa que a pessoa consegue fazer. Uma vez eu peguei uma terapeuta tentando ensinar um menino a cortar o pão, e o menino não tinha nenhuma habilidade para cortar o pão, simplesmente não dava. Aí fui ver o prontuário e vi que fazia meses que ela tentava ensinar o menino. Perguntei por que ela estava insistindo nisso. “A gente combinou que tinha de ensiná-lo a fazer um lanche.” Sim, mas ele não pode fazer com pão de fôrma? Não é todo mundo que vai fazer tudo na vida. O meu filho não sabe amarrar tênis e joga polo aquático. Todos os tênis dele ou já estão amarrados ou são de velcro. Na intervenção a pessoa fica ensinando a amarrar o sapato, porque senão ele não vai ser ninguém na vida. Mas o viés em que eu acredito é o viés da potencialidade. Se você estimula o que a criança sabe fazer, você consegue diminuir aquilo que ela não sabe fazer.
Os pais que se preocupam se o filho com TEA terá autonomia devem ficar muito felizes com esse olhar.
Rosane Lowenthal — Sim, nos relatórios dos pacientes para as famílias a gente contava primeiro o que o filho conseguia fazer. Lembro de uma mãe que chorou porque nunca tinham dito a ela que o filho era capaz de fazer alguma coisa. O problema é que a área da saúde não tem sempre esse olhar. A saúde quer curar, quer habilitar, quer tratar. A educação quer ensinar. As duas coisas são importantes, mas o fundamental é estimular a criança.
Por Rede Galápagos
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