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Entre tutores e pacientes: onde começa a voz da criança na terapia?
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Entre tutores e pacientes: onde começa a voz da criança na terapia?

Entre tutores e pacientes: onde começa a voz da criança na terapia?

01/08/2025
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Estudo de Rubilene Lustosa, segundo lugar em Bioética no 5º Prêmio Pensi de Pesquisa em Saúde Infantil, propõe quebrar a “conspiração do silêncio” e criar protocolos de assentimento que coloquem o paciente pediátrico no centro do diálogo clínico‑jurídico. Foto: Arquivo pessoal

Nada mobiliza tanto a bioética pediátrica quanto o instante em que uma criança pergunta se aquele exame vai doer ou confessa, num sussurro, que já sabe do próprio prognóstico. A cena, muitas vezes abafada por pais aflitos e por equipes temerosas de judicialização, foi o ponto de partida da advogada Rubilene Lustosa quando começou a frequentar os Diálogos em Bioética da Fundação José Luiz Setúbal, há pouco mais de dois anos. “Ouvi pediatras dizendo que o paciente nunca é problema, e que o problema são os pais”, recorda. “Fiquei perturbada: como o principal interessado pode ser mantido na ignorância sobre a doença que ameaça a sua própria vida?”

A inquietação virou artigo — “Capacidade decisional do menor em saúde: um equilíbrio delicado entre proteção e autonomia” — laureado com o segundo lugar na categoria Bioética do 5º Prêmio Pensi de Pesquisa em Saúde Infantil. O texto parte de duas referências jurídicas que, embora conhecidas, permanecem subutilizadas na prática hospitalar: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu Artigo 15 garante à criança e ao adolescente o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos que o afetem, e a Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, que consagra o princípio da “capacidade em evolução” sem estabelecer recorte etário. “As leis já dizem que a criança tem autonomia; falta trazê-las para dentro do plantão”, sustenta Rubilene. Aliás, quem conversar com a pesquisadora sobre esse assunto será lembrado por ela de pelo menos outros quatro artigos do ECA relevantes para a discussão sobre autonomia:

Artigo 16: detalha o direito à liberdade, incluindo ir e vir, opinião e expressão, crença e culto religioso, brincar, praticar esportes, participar da vida familiar e comunitária, participar da vida política e buscar refúgio.

Artigo 17: menciona a importância da preservação da autonomia da criança e do adolescente.

Artigo 18: destaca o dever de todos de zelar pela dignidade da criança e do adolescente.

Artigo 53: trata do direito à educação, com foco no desenvolvimento da pessoa, preparo para a cidadania e qualificação para o trabalho, aspectos importantes para a autonomia.

Especialista em direito médico e pós‑graduanda em direito sanitário pela USP, ela integra o comitê de bioética clínica do Sabará Hospital Infantil e prepara um projeto de pesquisa de campo, a ser submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) ainda este ano. A ideia é aplicar, na admissão hospitalar, um questionário que avalie a maturidade cognitiva e emocional de cada paciente, orientando a equipe sobre o grau de envolvimento possível nas escolhas terapêuticas. “Estou estudando a questão do corte de idade. Prefiro não fixar números, porque a experiência mostra crianças de cinco anos que entendem mais do tratamento do que muitos adultos”, afirma.

A convicção brotou de histórias concretas. Entre elas, um caso que não ocorreu no Sabará, mas que se deu na cidade de São Paulo e foi estudado pela pesquisadora. Trata-se de um caso emblemático, vivido por uma menina de doze anos, com câncer avançado, que, após quatro sessões ineficazes de quimioterapia, se recusou a continuar internada. “Ela pediu para voltar à escola e passar os últimos meses brincando. O hospital acionou o Ministério Público, e o juiz reconheceu a autonomia da paciente”, relata Rubilene. Episódios semelhantes se multiplicam nos Estados Unidos e, segundo a pesquisadora, revelam uma lacuna regulamentar no Brasil: “Quando a lei é omissa, quem decide é o juiz. Precisamos de diretrizes que deem segurança jurídica ao médico e respeitem o desejo informado da criança”.

Segurança, no entanto, não se resume a letras de lei. Envolve cultura institucional, treinamento da equipe multiprofissional e, sobretudo, empatia. Rubilene gosta de lembrar o dia em que, acompanhando o filho pequeno então internado em UTI, presenciou uma médica anunciar a uma avó, em voz alta e diante do neto adolescente, que o menino não viveria até o amanhecer. “Foi a própria criança quem consolou a avó”, conta. “Transparência não é brutalidade; exige linguagem adequada e sensibilidade.”

A pesquisadora acredita que, para estimular esse ambiente, há boas práticas que os serviços de saúde podem organizar, propondo rodas de conversa mensais, sem hierarquia, onde fisioterapeutas, enfermeiros, médicos e profissionais da limpeza possam expor dúvidas e angústias. “Quando a equipe está alinhada, o cuidado flui e todo mundo sofre menos”, defende.

A pesquisadora identifica dois ganhos tangíveis quando o assentimento é buscado: adesão ao tratamento e redução da ansiedade. “O paciente que compreende por que recebe determinado medicamento colabora mais, resiste menos a exames invasivos e confia na equipe”, diz. O mesmo vale para os pais, frequentemente consumidos pela tentativa de manter a doença em segredo. Rubilene chama esse jogo de “conspiração do silêncio”, nocivo para todos: “A criança finge que não sabe, os pais fingem que ela não sabe, e a equipe se vê paralisada entre ética e medo de processo”.

Uma questão de autonomia

Romper o pacto requer habilidades comunicativas que os currículos médicos começam a ensinar, mas ainda de modo incipiente. Rubilene, que ministra aulas em cuidado paliativo pediátrico, insiste na importância de formar profissionais capazes de dar más notícias sem retirar esperança. A palavra‑chave, repete, é empatia, algo que pode — e deve — ser aprendido: “Existem programas específicos para treinar médicos a ouvir, a calibrar a dose de informação e a equilibrar verdade e conforto”.

O trabalho premiado também sugere que o Conselho Federal de Medicina e os conselhos regionais ofereçam resoluções mais claras sobre assentimento infantil. “Hoje o pediatra obedece aos pais por receio de litigância. Se o conselho disser que conversar com a criança faz parte da boa prática, a postura muda”, argumenta. Rubilene lembra que o CFM reconhece a autonomia do adolescente, especialmente a partir dos 12 anos, para tomar decisões sobre sua saúde, incluindo a possibilidade de atendimento médico sem acompanhamento dos pais, em certas situações. “No entanto, essa autonomia é limitada pela necessidade de discernimento do menor e pela ausência de riscos para sua saúde ou de terceiros”, observa. Segundo ela, o médico tem o dever de informar e orientar o menor sobre sua condição de saúde e as opções de tratamento, respeitando sua autonomia e privacidade, mas também considerando sua capacidade de compreensão. Em casos de menores com deficiência intelectual ou em crianças, a autonomia é exercida pelos pais ou responsáveis legais, em conjunto com os princípios da beneficência e não maleficência. Ela cita o esforço do dr.  José  Luiz  Setúbal, presidente da fundação que leva seu nome, para manter o debate: “Quando ele lança desafios nos Diálogos em Bioética, provoca o serviço inteiro a repensar rotinas”.

Visibilidade inédita

Do ponto de vista acadêmico, a próxima etapa será medir, no Sabará, quanto a participação do menor altera indicadores como tempo de internação, necessidade de sedação e satisfação familiar. O desenho do estudo está sendo afinado com o professor Fernando Aith, referência internacional em direito sanitário. “Pesquisas teóricas já provaram o valor do assentimento. Agora falta evidência de campo para convencer gestores e formuladores de política pública”, antecipa Rubilene.

Enquanto o protocolo não sai do papel, pequenas mudanças já se insinuam nos corredores do hospital. Pediatras testam frases‑guia simples — “Você entendeu para que serve este remédio?” — e registram a resposta no prontuário. Psicólogos ganham protagonismo na avaliação de maturidade. E cada vitória, mesmo discreta, reforça a tese de que proteger e ouvir não são gestos opostos, mas faces do mesmo cuidado.

Escuta que devolve humanidade

A premiação do Pensi deu visibilidade inédita ao tema. Indagada se teme que a discussão permaneça restrita a círculos especializados, Rubilene devolve com otimismo: “A complexidade não pode ser pretexto para silêncio. Se explicarmos com clareza, a sociedade entende. Toda família reconhece o sofrimento de ver um filho excluído da própria história clínica”. Por isso, ela cogita transformar o estudo em documentário — ideia que encontra eco no próprio dr. José Luiz, sempre atento a narrativas capazes de impulsionar mudanças sistêmicas.

Antes de encerrar, a advogada lança um convite aos serviços de saúde: organizar rodas de diálogo, convidar juristas, abrir canais para ouvir pacientes e pais. “Não é preciso esperar nova lei. Podemos começar amanhã, com conversas francas e protocolos bem escritos”, assegura. Em seguida, cita uma metáfora recorrente nos congressos de cuidados paliativos: “Quando a criança participa, a sala fica menos escura. Ela acende a luz para todos”. A frase ilumina o propósito de sua pesquisa e explica, sem retórica desnecessária, por que a voz infantil já não cabe nas margens do prontuário.

O artigo de Rubilene Lustosa não traz soluções fáceis, tampouco defende autonomia irrestrita. Propõe, antes, um percurso cuidadoso que conjuga ciência, psicologia, direito e afeto. Ao fazê-lo, amplia a pauta tradicional da bioética pediátrica — até então concentrada em final de vida e pesquisa clínica — e reivindica espaço para o cotidiano das decisões terapêuticas. Se a legislação ainda não acompanha o ritmo das UTIs, o gesto de ouvi-las pode começar no leito, na conversa calma que antecede cada punção. Ou, como prefere Rubilene, “na escuta que devolve humanidade ao cuidado e ensina adultos a atravessar o medo com a coragem que só os pequenos conhecem”.

Oliveira, Rubilene Lustosa de; “CAPACIDADE DECISIONAL DO MENOR EM SAÚDE: UM EQUILÍBRIO DELICADO ENTRE PROTEÇÃO E AUTONOMIA”, p. 606-609 . In: Anais do 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil. São Paulo: Blucher, 2024.
ISSN 2357-7282, DOI 10.5151/sabara2024-3071

Por Rede Galápagos

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O conteúdo integral desta e de outras pesquisas selecionadas pode ser acessado neste link: 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil – Blucher Medical Proceedings

E-book >> Acesse a edição digital com os destaques do 7º Congresso Internacional Sabará-Pensi de Saúde Infantil Centro de Convenções Frei Caneca São Paulo – Outubro de 2024

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