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Com mais de 50 entrevistas com especialistas brasileiros e internacionais, além de histórias de mães, pais, crianças e adultos com TEA, obra combina muita informação científica com um olhar generoso para outros jeitos de ser e construir o mundo
Em 1988, quando as plateias soluçaram dentro do cinema com a tocante história de Raymond Babbitt, interpretado por Dustin Hoffman em Rain Man, os especialistas norte-americanos calculavam que havia mais ou menos 1 criança com autismo a cada 2.500. Quem não tinha alguém com autismo na família nem sabia que essa condição existia, e no final do filme saiu com a impressão de que era coisa de gênio um tantinho maluco, capaz de fazer contas assombrosas e decorar toda a lista telefônica. Rain Man chamou a atenção do mundo, mas o que ninguém poderia imaginar é que, quase 40 anos depois, o autismo se tornaria uma das condições de saúde mais discutidas e complexas dos nossos tempos.
Em 2022 o TEA (Transtorno do Espectro Autista) já atingia 2,8% da população pediátrica nos Estados Unidos, segundo o CDC ( Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA). Isso dá uma média de 1 criança com TEA a cada 36. No resto do planeta as estatísticas são igualmente impressionantes. “O autismo é uma questão de todos, é uma grave questão de saúde pública”, diz o dr. José Luiz Setúbal, vice-presidente do Instituto Pensi, que desde 2015 incorporou o TEA no seu programa e vem implementando projetos de assistência, ensino e pesquisa. Afinal, por que o número de diagnósticos só cresce e como os pais, os professores, o mundo podem entender o TEA e a vida que é outra depois dele? Essa é uma das tantas perguntas a que o livro-reportagem O futuro do autismo, criado pelas autoras Alecsandra Zapparoli e Cristina Ramalho junto com a equipe do Pensi, procura responder sobre os muitos lados desse espectro tão amplo.
Dividido em sete capítulos, que vão do primeiro caso documentado no mundo, o de Donald Triplett, em 1938, nos Estados Unidos, até o que algumas das pesquisas mais inovadoras no planeta apontam para o futuro, ele traz mais de 50 entrevistados, entre médicos, cientistas, terapeutas brasileiros e internacionais, mães, pais, avós, crianças, jovens e adultos com autismo que nos contam momentos muito, muito duros, e outros lindos, divertidos, pequenas e grandes vitórias, histórias inspiradoras. Cada capítulo abre com uma carta. O pai escreve para o filho, a mãe solo para outras mães, o filho com TEA para a mãe, o autor teatral para a sua personagem etc. Espie só a carta apaixonada do Pedro para Luly, ambos com TEA, um exemplo de como ter um amor pode incentivar a inclusão, a autoestima, a sensação de pertencimento.
Esse olhar generoso para outras perspectivas, outros jeitos de ser, embala um conteúdo com muita informação científica, com temas como:
Os leitores vão acompanhar o que acontece a partir daquela hora de receber o diagnóstico, quando o coração das mães e dos pais congela um pouco e o chão desaparece. E vem a pergunta inevitável: “O que vai acontecer com meu/a filho/a quando eu morrer?”. Médicos e psicoterapeutas falam sobre o medo do que virá, o desamparo, as reações naturais das famílias, explicam os critérios de diagnóstico, as escalas de avaliação, como combater o estigma e entender que toda criança, toda pessoa têm suas potencialidades.
Depois, a busca pelas terapias, tanto as mais tradicionais, que ajudam os pequenos a encontrar um lugar de calma e ordem e a desenvolver o seu potencial, quanto as que convidam a criança a se expressar pela arte. É quando a família entra em outro planeta, com demandas e atividades que ocupam várias horas semanais, todo um vocabulário a ser aprendido (neurofeedback, prompt, maximização de habilidades), um tremendo rombo no orçamento doméstico.
E ainda como lidar com as comorbidades, patologias que não pertencem ao TEA mas que em 70% dos casos aparecem associadas a ele, provocando crises e sintomas que mudam muito o curso do autismo, a qualidade da vida e a funcionalidade ao longo dela. Isso pode embaçar os diagnósticos e confundir um bocado as famílias, que correm atrás de informações e acabam esbarrando numa profusão de ofertas prometendo amenizar ou curar o autismo.
O dr. Ami Klin, um dos mais importantes especialistas em autismo no mundo, diretor do Marcus Autism Center (o maior centro de cuidados clínicos para crianças com TEA nos Estados Unidos) e chefe da Divisão de Autismo e Distúrbios do Desenvolvimento da faculdade de medicina da Emory University, em Atlanta, nos dá uma aula sobre como o TEA impacta o desenvolvimento do cérebro social e por que é tão importante o diagnóstico precoce. Também nos convida à mais bela descoberta: que a gente se disponha a compreender a perspectiva dos outros. “Se queremos entender como as pessoas com TEA enxergam o mundo, temos de olhar pelo olhar delas”, ele diz. Nesse mesmo capítulo, vemos como a análise genética, os sofisticados exames de imagem e a busca por biomarcadores que possam predizer o autismo nos ajudam a compreender a lógica interna do TEA. É o caso do premiado trabalho do dr. Charles Nelson, do Boston Children’s Hospital, na Universidade Harvard, que analisa por eletroencefalograma e ressonância magnética bebês aos 3, 6, 9 e 12 meses para buscar indícios do autismo antes de os sintomas se manifestarem. E entender a relação entre o desenvolvimento cerebral e os comportamentos das crianças.
As sagas de Taani, Raíssa, Helen, três mães de crianças com autismo, três histórias transformadas por projetos do Pensi com o SUS, sintetizam a filosofia do instituto de investir em estudos científicos que possam ser transformados em políticas para toda a sociedade. É a pesquisa saindo da hipótese para buscar evidências e transformar condutas, capacitar pessoas, promover a inclusão, florescer no mundo real. “Nosso intuito não é só plantar para o agora, é plantar para o futuro também”, explica a dra. Fátima Fernandes, diretora executiva do Pensi à época da edição do livro. Uma pesquisa sobre o uso do rastreamento ocular (Eye Tracking) mostra a viabilização do diagnóstico precoce. E um estudo com a Fipe-USP avalia quanto custa cuidar de uma criança com TEA, o que é essencial para a proposta de políticas públicas.
Se há quase quatro décadas o filme Rain Man apresentava o adulto com autismo como um gênio inesquecível, hoje dezenas de filmes, séries, reality shows mostram o romance no espectro, a beleza da diferença, para amadurecer a visão do resto do mundo sobre o que acontece depois que as crianças com TEA crescem. Nesse último capítulo, temos um amplo retrato dos muitos significados do futuro no autismo. Cada vez vemos mais adultos no espectro que se apaixonam, vão para a faculdade, trabalham, seguem mais ou menos donos do seu nariz. As imensas variáveis do espectro, como o nível de suporte, se há deficiência intelectual, as comorbidades, as condições emocionais e socioeconômicas das famílias, tornam impossível uma resposta só. O que a ciência e a sensibilidade asseguram é que a inclusão tem de ser para todos. Assim, o livro traz entrevistas sobre mercado de trabalho, as pessoas que atuam pela inclusão nas escolas e nas empresas, a mudança na visão da ciência nesses últimos 40 anos, que hoje entende que o mais importante é escutar o que as pessoas com TEA têm a dizer. É um sopro de otimismo: o amanhã poderá ser melhor.
Por Rede Galápagos
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