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“Para entender as pessoas com autismo, temos de enxergar pelo olhar delas”
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“Para entender as pessoas com autismo, temos de enxergar pelo olhar delas”

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26/06/2025
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Uma conversa reveladora com o dr. Ami Klin, diretor do Marcus Autism Center, o maior centro de cuidados clínicos para crianças com TEA nos EUA, conteúdo exclusivo do livro O futuro do autismo, publicado pelo Instituto Pensi

A cena é uma metáfora do autismo: o cientista brinca com uma menininha, puxa papo, fica tão próximo como se colasse o seu rosto no dela. A menininha não olha nem uma vez para ele. Prefere voltar o foco para um confeito, um M&M lá longe, no canto da sala. O dr. Ami Klin é o cientista. A menininha, Helen, 15 meses, a mais jovem diagnosticada com autismo até então. Gravado há mais de 20 anos, o vídeo já foi exibido em inúmeras apresentações e as reações da garotinha inspiraram três artigos na revista Nature que sacudiram muito do que se sabia sobre o diagnóstico do autismo. Ele mostrou que era possível, sim, diagnosticar o TEA antes dos 3 ou 4 anos e começar bem mais cedo as intervenções. Mas a grande lição que Helen lhe deu foi filosófica: o autismo é um jeito único de construir o mundo.

Foi assim que esse brasileiro de 63 anos saiu, adolescente, de Curitiba — “onde nunca vi alguém com Down ou com autismo; tudo era escondido” — para estudar na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde queria entender como os valores culturais moldam nossas escolhas políticas, a nossa personalidade. Nos intervalos, trabalhava com crianças com deficiências, poucas com autismo.

Dali seguiu para um doutorado em psicologia na London School of Economics, e morou numa residência para adultos com distúrbios mentais. Frequentemente, passava alguém pelado e tendo convulsões. Um dia Klin inventou um brinquedo com dois botões: ao pressionar um, ouvia-se a voz da mãe da criança. No outro, sons incompreensíveis. Os bebês típicos se concentravam quando ouviam a voz da mãe. Os autistas não notavam a diferença. Ele ganhou reconhecimento internacional. Donald Cohen, então diretor do Centro de Estudos Infantis de Yale e um dos grandes pesquisadores do TEA, voou até lá e trouxe Klin no avião de volta.

Se a gente quer entender como as pessoas com autismo enxergam o mundo, têm de enxergar pelo olhar delas”, pensava o Dr. Klin, quando convidou Warren Jones, um cientista e professor de arte para crianças com autismo, para criarem um aparelho que pudesse rastrear o olhar dos pequenos. Nascia o Eye Tracking, muito eficiente no diagnóstico precoce, uma das bandeiras do dr. Klin. Era o convite à mais bela descoberta: entender a perspectiva dos outros.

“O autismo é uma interrupção das nossas habilidades de sobrevivência” — assim o senhor definiu o espectro numa palestra quando falava sobre o cérebro de quem tem TEA. O que isso quer dizer, exatamente?

Dr. Ami Klin — No cérebro existe a parte que é definida pelos nossos genes e existe a parte em que ele é lapidado. O cérebro é esculpido pelas experiências que nós temos. Todos os seres humanos são sociais, nada esculpiu o cérebro humano ou de todos os primatas de maneira mais forte do que o fato de que nós vivemos juntos. Nós dependemos das respostas dos outros para sobreviver. E a experiência mais importante que uma criança tem desde que nasce é a relação recíproca com o cuidador. Então o bebê chora ou sinaliza, nos comportamentos, nas reações, o que ele precisa. As crianças com autismo nascem com uma sociabilidade atenuada e isso vai impactar na sobrevivência e no seu desenvolvimento, porque esse mecanismo de aprendizado social do cérebro começa nas primeiras horas de vida e continua.

Então quanto mais o tempo passa, mais o cérebro autista fica, digamos, em desvantagem?

Dr. Ami Klin — Sim,  mas o cérebro vai perdendo. Vou dar um exemplo de uma exposição social: uma criança neurotípica de dois anos vendo outras crianças brincando na frente delas. O cérebro dela tá o tempo todo aprendendo ali. Já uma criança com autismo, em cinco minutos dessa mesma exposição social, perde mais de 500 oportunidades de aprendizado social. Então é importante o diagnóstico cada vez mais precoce. E antes de o bebê engatinhar, andar etc. ele vai perceber o mundo pelo olhar. Em 2013 nós publicamos um artigo na Nature mostrando que os bebês com autismo têm um declínio na capacidade de fixar a atenção dos olhos dos dois meses aos seis meses de idade; é uma janela ali no desenvolvimento do cérebro em que a gente já pode perceber isso. Isso nos ajuda a predizer o autismo.

No Marcus Autism Center vocês acompanham as crianças e começam as intervenções desde quando?

Dr. Ami Klin — Acompanhamos os bebês desde que nascem e em todos os meses. E já começamos intervenções com a criança e a mãe desde as primeiras semanas de vida para trabalharmos esse aprendizado social e construirmos essas habilidades ao longo do desenvolvimento da criança. A gente usa reforços comportamentais, estimulamos a interação com a mãe para fazer com que a criança entenda uma coisa que ela não aprende naturalmente. O que queremos mostrar é que o diagnóstico precoce e as intervenções precoces são eficientes e importantes. Nós estudamos as crianças com diversas metodologias. Além do Eye Tracking, temos a ressonância DTI (uma nova tecnologia que detecta as conexões do cérebro) e também fazemos estudos em IBS (Interbrain Synchronization, que acompanha por várias técnicas a sincronia de dois cérebros durante um comportamento), registrando a sincronia de ondas cerebrais entre a mãe e a criança. Todos os trabalhos que nós fazemos com bebês humanos, nós fazemos com bebês macacos. É praticamente tudo igual, mas tem de multiplicar por quatro porque eles amadurecem quatro vezes mais rápido. O que eu quero dizer é que uma semana da vida de um macaco equivale a quatro semanas da vida de um bebê humano.

Estamos falando do maior centro de cuidados clínicos para crianças com autismo nos Estados Unidos. Quantas crianças atendem? Com qual estrutura?

Dr. Ami Klin — Tenho 460 pessoas trabalhando e 5.500 crianças atendidas aqui. Muitas delas vêm todos os dias, isso só nesse prédio. Nós temos ainda três satélites e vemos crianças na comunidade. Também somos o maior programa de ciência existente nos Estados Unidos nessa área, da genética até a ciência de implementação.

O senhor fala que desde o início a criança com TEA vai perdendo a capacidade de interagir. E nos casos de autismo de regressão, quando a criança se desenvolve normalmente e aos dois anos, por exemplo, perde tudo? O que acontece?

Dr. Ami Klin — Em estudos científicos em diversos países essa regressão na verdade não existe. O que existe é a perda do progresso. Os pais dizem “a criança estava falando tudo”. Você imagina uma criança falando 200 palavras e daí perdendo de uma hora para outra 200 palavras? Não é assim. Geralmente a criança fala quatro ou cinco palavras e deixa de falar. Mas nesses casos a criança com autismo estava copiando esses sons que nós interpretamos como palavras, mas ela não tem a motivação de comunicação. Para uma criança típica, aquele som, aquela palavra tem um impacto, vai ser útil, isso que motiva o aprendizado da linguagem. Para a criança com TEA, não, então ela pode falar uma hora e depois deixar de falar. Ela pode falar um som que a mãe entende como carro, mas a criança com TEA não associa que quando fala aquele som, carro, imediatamente está se referindo a um carro. Então para a ciência isso não é uma regressão, é uma perda de progresso.

“Se a gente quer entender como as pessoas com autismo enxergam o mundo, tem de enxergar pelo olhar delas” foi o seu mote para desenvolver o Eye Tracking. Quando uma criança com TEA olha para um padrão geométrico e não nos olhos, ou aquela menininha do vídeo que em vez de brincar com você prefere um M&M, o que ela percebe do mundo?

Dr. Ami Klin —Tá vendo essa placa? (está escrito See it is we are — Vemos o que somos, em tradução livre). A gente determina o que o mundo é, a gente vê o que é importante para a gente. Uma criança com autismo vai entrar no mesmo ambiente social que uma outra criança. O que elas vão esculpir daquela experiência é aquilo que é importante para elas. A criança com TEA não tem a mínima ideia da importância de outra pessoa, ela tem interesse nos padrões da cortina ou do tapete. Isso não quer dizer que a pessoa com TEA é ruim, não tem sentimentos. É que o cérebro dela é especializado em coisas físicas, ela vai entender o mundo do ponto de vista físico, não social. Então ela prefere olhar os movimentos da boca da mãe em vez de olhar nos olhos dela. É uma maneira diferente, é uma maneira única de construir o mundo. Uma pessoa com autismo pode ser um grande intelectual e não ter a sociabilidade biológica que um bebê tem. Nesse mundo existem muitas maneiras de ser um ser humano, existem pessoas que são obcecadas em outras pessoas, têm interesse pelas outras. Agora há outras pessoas que são obcecadas em um teorema físico ou em uma área técnica. Se a gente não der oportunidades para a diversidade de pessoas, todos nós teremos problemas.

Se a gente determina o que o ambiente é, e criamos experiências a partir disso, dá para dizer que os fatores ambientais justificam o aumento de diagnósticos de TEA? E que vão continuar crescendo?

Dr. Ami Klin — Não. O autismo é uma condição biológica, uma condição genética. O ambiente é o que nós chamamos aqui de social determinants of health, que são os determinantes sociais de saúde, como a possibilidade de você ter estresse, de você ter problemas econômicos, de você ter questões de segurança. É tudo que afeta a classe dos menos favorecidos, digamos assim. E isso vai ter um efeito sobre a expressão do autismo. Então, o autismo com pobreza, por exemplo, é um desastre muito pior. No ambiente de maior pobreza a criança vai ter fatores que dificultam o acesso ao tratamento, ao desenvolvimento. Ou quando a criança é negligenciada, por exemplo, num orfanato, ela pode desenvolver comportamentos que parecem autismo, mas não se trata de autismo. Quando ela é bem tratada de novo, muda de situação, aquilo se normaliza. Os diagnósticos cresceram muito também porque a gente não estava olhando outras populações, como os hispânicos, os negros. Sabíamos só das pessoas com autismo que iam às clínicas.

Quem tem autismo, e aí já penso em adultos, sem deficiência intelectual — como é que essa pessoa se percebe? Como se vê?

Dr. Ami Klin — Nós aprendemos sobre nós mesmos por intermédio de outros. Essa ideia de que nós temos, digamos, um acesso direto à nossa natureza é uma coisa que do ponto de vista científico não é certa. E o motivo é que, desde pequenininho, você é fruto de como as pessoas te tratam. Significa que você acaba desenvolvendo o seu conceito de si mesmo pela interação com as outras. Então a pessoa com autismo, mesmo sem deficiência mental, não vai saber mais do autismo. Ela já é toda confusa sobre toda a parte mental de outra pessoa. Não tem os conceitos para compreender os pensamentos, as intenções, as emoções dos outros e não vai ter de si mesma. Agora, de todo modo, mesmo em graus leves, o autismo traz muito sofrimento. E se você perguntar a um adulto com TEA, de grau mais leve, que só foi diagnosticado bem tarde e conseguiu ter uma vida quase dentro dos padrões, se formou, trabalhou, como foi viver com autismo, vai ver que teve muito, muito sofrimento.

E no caso de pessoas com TEA que são grandes artistas? Se a pessoa não se percebe, se não se conecta com as próprias emoções, nem com as dos outros, como vai se expressar pela arte? Penso nos savants (pessoas que não têm nenhuma habilidade social e são geniais, com habilidades sobre-humanas em alguma área, na arte, ou matemática).

Dr. Ami Klin — Depende daquilo que você vai descrever como arte. Numa das escolas em que eu trabalhei com autismo, lá na Inglaterra, tinha um menino que não falava. De repente ele começou a fazer desenhos que eram praticamente cópias fotográficas, perfeitas, daquilo que estava na frente dele, e com perspectiva, sombras, incrível. Esse menino ficou famoso no mundo inteiro pelos seus desenhos arquitetônicos. Foi descrito por Oliver Sacks (neurologista, autor de vários livros) e hoje tem uma galeria em Londres. Ele se chama Stephen Wiltshire. Pegaram o menino, botaram num helicóptero sobrevoando Manhattan, ele desenhou todo o skyline, é tudo perfeito, ele cria painéis de seis metros. Quando se pega uma criança típica e ela quer desenhar um homem, então pensa: um homem tem uma cabeça, então faz uma cabeça, daí faz duas pernas etc. O desenho daquela criança vai pela compreensão que ela tem daquilo que quer desenhar. E daí acaba sendo um desenho bem simples. A maneira dele de desenhar é diferente. Ele desenha tudo o que vê. Não tem filtro, ele não está reconstruindo pela percepção, ele está reproduzindo com uma memória fora do comum. É uma maneira diferente da de Van Gogh, por exemplo, que tinha uma emoção e criava a partir dela, para provocar outras emoções em quem vê. O Steve tem uma obsessão, tem um talento absurdo, mas não tem uma compreensão, uma intenção sobre aquilo que ele faz. Poderia ser uma obsessão em matemática, em engenharia. É no desenho. (No perfil de Stephen, Oliver Sacks diz que suas limitações são sua maior força. Ele não tem intenção na sua arte, mas faz uma representação significativa do mundo.)

Queria que o senhor citasse algum caso que o tocou pessoalmente nesses anos todos tratando de pessoas com autismo.

Dr. Ami Klin — Foram muitos. Todas as pessoas no Lauriston Road Residential Unit (onde Klin morou com pessoas com distúrbios mentais) em Londres. Muitas pessoas, incluindo adultos, na Yale. Um adulto em particular, que eu vi por 18 anos na terapia, me influenciou demais (ele assistiu ao filme Quem Tem Medo de Virginia Woolf para o teste do Eye Tracking). Teve um adolescente com Asperger que mudou minhas visões (Robert, um garoto de quase 12 anos, descrito num paper em 2000, que tinha depressão e seu caso mostrava contradições que existiam na época sobre a Asperger). E conhecer a garotinha de 15 meses do vídeo moldou não só nossa equipe do laboratório como a ciência. Ela foi a mais jovem criança diagnosticada com autismo na época e sobre ela escrevi vários papers e um artigo que influenciou muita gente na nossa área (quando foram mostrados os padrões de reconhecimento visual de Helen, a menininha).

O que o estudo do autismo e a convivência com pessoas neurodivergentes mudaram no senhor como pessoa?

Dr. Ami Klin — Com certeza mudou muito. Assumir a perspectiva de outras pessoas cujas experiências do mundo são tão diferentes enriquece a sua noção da imensa latitude da experiência humana. Isso me fez ter fortes convicções da importância da diversidade neste mundo, para que possamos resolver velhos problemas com novas ideias. E essas ideias precisam vir não só de pessoas de origens e experiências diversas, mas também com diferentes formas de conceber o mundo. Essas ideias estão ligadas à principal razão pela qual entrei no campo da psicologia e da neurociência social: a natureza sagrada da consciência de um indivíduo, o milagre de cada alma humana. A melhor maneira de descrever indivíduos com autismo, para citar o título de um livro de Barry Prizant: Uniquely Human (em português, publicado como Humano à sua maneira: um novo olhar sobre o autismo.

Por Rede Galápagos

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