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Participei do II Congresso Internacional Sabará de Especialidades Pediátricas, ocorrido nos dias 12, 13 e 14 de setembro, no Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo. Gostei muito das atividades em que estive presente. Comento aqui duas delas, que fizeram parte do Simpósio, “Psicologia Hospitalar, Psicanálise e Humanização”, muito bem organizada pela Doutora Gláucia Faria da Silva. A primeira atividade refere-se à apresentação “A cada ausência tua, eu vou te amar” – de Denise Lopes Madureira, do Hospital Infantil Sabará. Ela falou de um garoto, a quem chamou de Samuel, e sobre o que compartilhou com ele em seu processo de um morrer inevitável e indesejado. Seu relato foi tocante pela forma doce, calma, sem dramas, respeitosa e profissional com que nos contou sobre uma vida que teve seu começo, meio e fim, ainda que precoce para nós, que pensamos que só os velhos estão na idade de morrer. Aos presentes, foi o que aconteceu comigo, era como se ele ainda estivesse vivo, entre nós, graças ao seu testemunho e à reverência que atribuía à sua vida e à sua morte.
Outra apresentação, que muito me chamou a atenção, foi a que fez o Professor Christian Dunker, do Instituto de Psicologia, da Universidade de São Paulo, sobre “o tempo da infância: cuidado e violência”. Não vou resumir sua fala, mas destacar, segundo meu ponto de vista, um aspecto que me chamou a atenção e que penso ser valioso para aqueles que cuidam ou tem filhos ou netos pequenos. Trata-se do aprender a cuidar de si, para, então, poder cuidar do outro. Em nossa visão adulta pensamos que a criança pequena, nos seus dois ou três primeiros anos de vida, não sabe cuidar de si, julgamos que ela é pura dependência dos outros, sobretudo de seus pais ou responsáveis. É verdade. Sem eles, ela não saberia encontrar comida, cuidar da saúde, proteger-se do frio, enfim, sobreviver. Sem eles, ela não seria apresentada ao social e ao cultural, não teria a quem ouvir, dar risadas, não se sentiria parte do mundo. Cuidar de uma criança e se importar com sua vida e bem-estar, com tudo aquilo que promove seu desenvolvimento, são, de fato, o maior prova de amor que podemos prestar a ela, pois, sem isso, a criança mais saudável e forte não sobreviveria. Podemos, então, por causa disso, concluir que uma criança pequena não sabe ou não pode cuidar de si? Minha resposta é que ela, em algum nível, sabe sim cuidar de si. Mais que isso, entendo que esse cuidado que ela tem de si é fundamental para sua vida, para seu desenvolvimento em termos físicos, emocionais, cognitivos e sociais.
Em que situações a criança cuida de si, não é passiva ou submissa aos cuidados dos adultos? Mesmo no hospital, doente, com restrições para andar, falar, comer ou brincar, ela ainda assim cuida de si. Respira, reage com sensibilidade aos estímulos e medicamentos que lhe oferecem, chora, faz pedidos, reclama, toma iniciativas, luta, em seus termos, para viver, para recuperar seu bem-estar. Há uma situação em especial significativa para o saber cuidar de si da criança pequena. Ela se refere ao brincar, ao reagir às propostas de brincadeiras que lhe fazem. Cuidar de si, nesse caso, significa poder escolher o que fazer com um brinquedo: olhar, bater, esconder, chocalhar, por no colo, mudar de lugar, inventar histórias. Ela está cuidando de si através de seus comportamentos, pelas formas como interage com eles. Às vezes, está séria, compenetrada, outras vezes, exploradora e curiosa, cheirando, tocando, lambendo, apertando. Nestes momentos, mesmo doente, ela é pura presença, força e alegria de vida. É certo que, também, as crianças gostam e precisam das brincadeiras com os adultos. Elas precisam que eles leiam histórias, olhem nos seus olhos, “conversem” com ela, abracem-nas, demonstrem interesse e carinho. Não nos esqueçamos de que essa criança, faz pouco tempo, era uma parte do corpo de sua mãe, estava dentro de sua barriga e desfrutava uma possibilidade de se desenvolver diretamente através dela. Agora que já nasceu, não é mais uma parte, é una, é um indivíduo, com suas responsabilidades frente à vida. E são muitas as responsabilidades de uma criança pequena, sobretudo aquelas que os azares da genética ou do social não lhe possibilitaram as melhores condições de saúde e bem-estar.
Corro um perigo de má leitura ao que acabei de afirmar. Não se trata de, pelo que eu disse, considerar a criança um pequeno adulto, que sabe e deve se virar sozinha. Que não precisa de nós, de nosso cuidado e importância. Eu não disse isso. Disse que elas mereciam ser respeitadas no seu brincar e no exercício, dentro de seus limites, de suas possibilidades de viver. Não se trata, por isso, de exigir nem mais, nem menos, do que ela pode fazer. Uma criança pequena é uma criança pequena. Esperar que ela se comporte como se fosse grande é uma exigência impossível para ela. Cobrar um desempenho, uma competência para a qual ela não tem condição de oferecer, é também cobrar demais. Crianças pequenas não foram feitas para nos agradar ou realizar nosso desejo de, através delas, sermos isso ou aquilo. Crianças pequenas são o presente e o futuro do mundo. E para isso precisam ser cuidadas naquilo que só os adultos podem cuidar, mas, ao mesmo tempo, precisam ser respeitadas naquilo que só elas podem fazer por si mesmas.
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Atualizado em 21 de junho de 2024