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Existe um momento anterior, que antecede as coisas. Antes de comer algo, antes de fechar os olhos pra receber um beijo, antes de um abraço, de entrar em um lugar nunca visto. Esse segundo, talvez fração de um segundo, poderia ser um objeto de estudo de anos a fio. O que levamos dentro de nós nas pequenas prévias da vida. Prés que acontecem o tempo inteiro. A vida não está pronta. A gente tece enquanto vive, e quando vê já tem desenhos nossos no espaço.
Para além da vida cotidiana, existe esse momento para quem está prestes a entrar num quarto de hospital. Do ofício que nos pede o encontro entre corredores, UTIs, quartos que nos esperam sem saber e nós não sabendo indo abrir a vida num novo espaço.
Estar com crianças num hospital é sempre algo a mais, sempre respira a novidade de estar junto, acontecendo ali.
O presente de não ter ideia do que nos espera. Acarinhar o momento, antes, é esvaziar a vida pra ela abraçar a gente. E cada quarto abraça do seu jeito, com uma pulsação, com um pedido diferente. Não ter ideia se você precisa ser engraçado, calmo, dançar, ficar parado é o trunfo de entrar de verdade no mergulho do encontro. E esse esvaziar a ideia de um encontro te dá de presente o encanto.
Ah! O encanto!
Ele colore os olhos e saboreia a boca pra tudo ficar mais gostoso. E ficar gostoso sendo exatamente o que é. Se encantar pelo seu parceiro de trabalho de novo e de novo e de novo na próxima semana, se encantar pelos corredores, sempre com novos passantes, se encantar pela equipe, que cada dia é uma entrando ali, num quarto, numa enfermaria, numa UTI, se encantar com os seres mágicos que estamos por conhecer ou reconhecer.
O encantamento é filho da verdade com a leveza, ele nos pede espaço, respiro, escuta. Eu entro num quarto, me encanto pelo que vejo e espero meu encantamento ler o momento, eu espero o outro se encantar comigo. Observe que o encantar-se do outro pode ser para dizer não para mim. E eu, encantada, me retiro com o peito grato por aquele fragmento de encontro.
Encantar-se é empoderar o outro. Eu te olho, me encanto, e espero nossa dança começar. E são tantas as danças possíveis! Quando eu me permito sentir o frio da barriga de um encanto eu vejo o outro de verdade sem medo do que ele tem pra mim ali. Eu empodero o outro a sentir a verdade dele naquela tecedura de vida. Eu dou o tempo do outro me dar um “sim”, querer rir, querer ficar quietinho, querer me dizer não, estar com raiva ou pedir uma música.
Em uma vivência escutei de um mestre, que indicou a quem trabalha em hospital, criar uma relação de encantamento, onde o outro me preenche de alegria por ser lindo e bobo. Nem só lindo para não ser o puro deslumbre da beleza, nem só bobo para que ele não se sinta em julgamento. Lindo e bobo, na essência pura de encontrar no outro o que é único, lindo e bobo dele.
A realidade do dia a dia nem sempre permite que esse encantamento se instaure, por inúmeros motivos. Uma rotina de hospital pode ser cansativa e cheia de informações intensas. Não é simples a tarefa do encantamento puro a todo o momento. Às vezes você entra no quarto e não consegue dar o tempo real de que tudo se instaure e, no medo de não realizar seu objetivo, acaba por artificializar uma relação: tira suas cartas da manga arriscando realizar uma visita mais para você do que para o outro. Tudo bem, até porque nosso repertório também é interessante. Mas não podemos esquecer do mais importante: estamos em trabalho com aquela família, aquela criança, para empoderá-las. Para deixá-las existirem inteiras dentro daquele espaço de recuperação. É normal que não seja sempre, mas a busca é que nos deixemos cair no abismo daquele momento sem medo de falir. O que quer que seja, eu não preciso ter medo da vida, nem o outro de me mostrar a dança que quiser e puder naquele momento. Nosso procedimento não necessita ser espetacular, o espetáculo às vezes está no silêncio de apenas estar ali, junto com o outro, o vendo e enxergando de verdade, com sua beleza, bobagem, e fragilidades reais do momento presente.
A vida no hospital é uma dança num chão leve, delicado, os passos encantados precisam estar atentos a cada pirueta sem perder a força nem a leveza.
Cada quarto nos dá o presente da dúvida. Essa deliciosa dúvida de não ter ideia da vida que vou ganhar de presente em cada encontro. O frio na minha barriga por ter mais um tempo com alguém que existe no mundo e está ali por uma missão. Eu me encanto por essa missão, mostro a minha, o outro tem o tempo de dar o próximo passo e assim nós tecemos nossa dança. Somos colecionadores de encantos. Guardamos todos eles. Alguns se refazem por muito tempo, outros existem no tempo de uma visita, outros existem suspensos num segundo de olhar, mas sempre são pequenas eternidades encantadas desenhadas por nós e por cada criança. Não somos médicos, não sabemos curá-las com a ciência, mas podemos sempre ajudar a lembrar do encanto. Disso elas já nos lembram só de existir.
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Atualizado em 16 de outubro de 2024