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“Não pode castelá” ou As sombras do real
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“Não pode castelá” ou As sombras do real

“Não pode castelá” ou As sombras do real

29/04/2014
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Há algum tempo, soube que adolescentes de abrigo (jovens que por algum motivo estão afastados de suas famílias) dizem uns aos outros: “Não pode castelá”. Transformando em verbo a metáfora dos ‘castelos de areia’, a ordem indica que sonhar, imaginar, fantasiar prejudica as chances de sobrevivência, onde é preciso ter os pés no chão. Sem comentar qual chão que estes garotos têm sob os pés, vamos castelar um bocadinho a partir da experiência do Sabará.

Vinícius, 2 anos e 10 meses, ficou internado mais de 40 dias em 2013. Naqueles dias, Vinícius não queria ninguém, não andava, se fechava emburrado ou choroso no colo da mãe, preocupando toda equipe. Em nosso primeiro contato, inventamos uma brincadeira que funcionou todo o tempo da internação: dizíamos “sai daqui” para qualquer objeto que se aproximava, legitimando e transformando em jogo seus sentimentos de tristeza, dor e exaustão. No segundo período de encontros, já em 2014, Vinícius tinha os olhos cheios de lágrimas quando entrei no quarto, mas foi só dizer “sai daqui aguinha”, que ele gargalhou como alguns meses antes.

O que faz esta brincadeira simples e altamente repetitiva ser tão eficaz sobre uma criança de dois anos? Qual a função da brincadeira? E da repetição da mesma brincadeira incontáveis vezes?

As sombras da realidade

Você já prestou atenção ao ambiente social que impera em filmes como Peter Pan ou Nárnia? Lembre bem: em ambos as crianças estão sendo, vivendo consequências da Guerra; deixam/perdem os pais, casas, escolas, partem de um universo caótico, cruel, incompreensível e inóspito e alçam voo para um mundo paralelo, cheio de aventuras e desafios. Atenção: não é um mundo feito de alegrias. Há sempre muitos perigos, há regras, mas elas são protagonistas e seu conhecimento e experiência tem grande valor no novo universo.

Vamos ao ponto: a Guerra é uma maneira eloquente de mostrar como as crianças experimentam o mundo dos adultos, da rotina, dos horários e da racionalidade. Como enfrentam as separações, o tempo em que ficam longe dos pais e das coisas prazerosas, as obrigações e regras que não fazem sentido para eles ou o que sentem quando dizemos: “é para seu bem”, “no futuro você vai entender”, coisas que nos dão razão, tirando a deles.

Não é preciso a Guerra para entender a importância da fantasia. Se um menino só pode ser menino e não pode experimentar ser príncipe, ladrão ou super-herói; se ele não puder “fazer de conta”, então o mundo se torna uma prisão vazia de sentido, onde tudo está definido e onde sua presença não faz diferença – basta obedecer. Mesmo?

Para apreender o real, antes a criança precisa fantasiar. Até pelo menos os 6-8 anos, a fantasia preenche na vida psíquica as funções do pensamento. Hipóteses lógicas dentro de um raciocínio operacional, as fantasias tecem enredos explicativos para o mundo concreto e emocional da família, onde todos têm papel fundamental – sobretudo ela mesma. Mestre da narrativa de sua vida, sentido e criatividade jorram em cada pequena Alice, em cada corajoso Pan.

Brincadeiras, contos de fadas e histórias ajudam o processo de desenvolvimento criando um espaço onde as fantasias são compartilhadas e o enredo milenar traduz – sem ensinar – como lidar com angústias, medos ou a intensidade dos desejos. Destes tijolos, hoje tão relegados, surge a significação e a compreensão do mundo, surge na verdade o chão a partir do qual enfrentaremos as sombras da realidade.

Dra. Gláucia Faria da Silva

Dra. Gláucia Faria da Silva

Psicóloga e psicanalista há mais de 30 anos, com mestrado e doutorado pelo Departamento de Psicologia Social do IP-USP. Coordenou o Serviço de Psicologia Hospitalar do Sabará Hospital Infantil de 2012 a 2021. Dedica-se diariamente a aprender a escutar os ecos da alma: no movimento, no olhar, na fala, no brincar.

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