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O menino dos mantras
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O menino dos mantras

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04/07/2018
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Como diria o poeta da infância Manuel de Barros “Há histórias tão bonitas que até parecem que são inventadas”. 

Uma dessas histórias aconteceu este ano com uma família extraordinária que conhecemos no Sabará Hospital Infantil, o encontro aconteceu devido a necessidade de internação de um dos filhos, que aqui apelidarei livremente de Davi, já que é mais um destes “guerreiros guerreiraços” que mesmo tão pequeno, já enfrentou batalhas contra gigantes.

Davi veio passar uma temporada de verão na UTI. Sim, enquanto pela janela avistava as águas de fevereiro e de março fechando o verão e uma promessa de alta no seu coração, ali no quarto Davi fez anos, comemorou aniversário, e passou semanas conhecendo um mundo de enfermeiras, técnicas, auxiliares, médicas, trabalhadoras da limpeza e por aí vai.

Aprendemos muitas coisas ao lado deste guerreiro e de sua família – sempre tão aberta a nos receber e brincar com a gente. Desenvolvemos muitas brincadeiras juntos: bolas em formato de melancia, que se tornam “bolancias” e assim desafiam até as regras da gravidade; bigodes que grudam no corpo e viram sobrancelhas, cavanhaques, barbas e junto disso muitos personagens. Inventamos novas línguas; soltamos muitos puns e exploramos o espaço de se divertir com o escatológico. Brincamos de congelar um ao outro e tentamos juntos enxergar num quarto de UTI um lugar mais divertido para se passar uma temporada de verão. Cada visita uma novidade. Cada encontro um tom diferente, uma cor diferente, uma temperatura diferente a se conectar. 

E em um destes dias, em que se bate na porta do quarto sempre sem saber o que se dará, eu, Fada Sinão e Alice no País das Armadilhas encontramos Davi inquieto, andando de um lado para o outro do quarto com um lencinho umedecido na mão, limpando o quarto todo. Assim que entramos no quarto ele nos entregou mais lenços umedecidos e nós logo nos vimos também envolvidas nesta faxina. A vó dele então nos contou que ainda aquele dia ele até já havia feito sua mala para fugir do hospital, colocando até comida escondida na bagagem como precaução. Estava tudo evidente: Davi era um fugitivo em potencial e nosso mais novo Robin Wood preferido! Seguimos ouvindo suas ordens, limpando todos os lugares que ele nos sugeria. O quarto não era tão espaçoso, e como estávamos em número grande (mãe, vó, Davi, Sinão e Alice), a mãe se colocou no banheiro de porta aberta para nos dar mais espaço. Davi então parou a brincadeira, olhou para nós e foi se sentar na frente da porta do banheiro, perto da mãe e perto da gente. Ele se sentou no chão com as pernas cruzadas, como um índio ou como um Buda. E neste instante alguma coisa mágica aconteceu no quarto, que acontece somente quando a gente está aberta, conectada com os outros em uma escuta apurada, em um compromisso coletivo de bem-estar e acolhimento. Vendo aquele nosso guerreiro sentado ali como um Buda, me veio sem perceber uma vontade de evocar o som do “Om”. Comecei e a Alice, também sem perceber, quando viu já estava evocando também. Paramos tudo o que estávamos fazendo. Sentamos no chão como ele e continuamos “ooooommmm”…  O quarto respirou e abriu espaço para o silêncio acolhedor. Davi ouvia tudo em silêncio, continuava sem se mover: respirava. Depois de tantos “ooooooommss”, os mantras vieram naturalmente. Fui resgatando mantras que aprendi na adolescência (com um professor de teatro transformador de vidas chamado Saliba). Uma canção depois da outra… O quarto inteiro se aconchegou naqueles mantras, encontrou sua harmonia. Davi então foi se aconchegando no chão. Deitou. Saboreou a vibração da música e seu silêncio interior. Em determinado momento ele levantou do chão: achamos que ele já estava farto de ouvir mantras, mas para nossa surpresa ele se ergueu, pegou um lençol e um travesseiro e voltou ao chão, fazendo deste canto – entre o banheiro e o quarto de UTI – o seu próprio ninho. Ele se aninhou no chão e nós continuamos cantando, cantando. Quando percebemos o quarto todo já cantava: Sinão, Alice, Mãe, Vó… e Davi sentia a música, fechava os olhos, abria os olhos, se aninhava no ninho feito de lençóis de UTI, recebia aquele carinho, abrindo espaço para seu silêncio, sua quietude. E junto com ele nós também nos aninhávamos naquele instante vivo, presente, quente e afetuoso que havíamos todos juntos dado de presente.

Foi um instante mágico. Um instante eterno na minha vida. Um instante onde antes de estarmos situados em um hospital, estávamos juntos, situados nos nossos próprios corpos e na nossa experiência coletiva de harmonia e afeto. O quarto ficou quente, calmo e terno. Seguimos cantando até ele quase adormecer. E quando o silêncio se instalou de vez, pegamos uma carona com ele e deixamos o quarto com a alegria e emoção conquistadas pela sinceridade daquele momento juntos.

Algumas semanas depois Davi conquistou a tão esperada alta! Ele saiu do hospital para enfrentar suas tantas outras aventuras, mas uma parte dele e daquele momento permanecerão para sempre dentro de nós e das memórias sinceras que este trabalho no hospital nos proporciona.

Algumas semanas depois, conversando com a mãe de Davi, tivemos o prazer de saber que ele continua aprendendo e desfrutando dos mantras. Uma parte deste encontro permaneceu ecoando nele, como ecoa em nós também. E daqui para frente, sempre quando evocar um “om”, hei de me lembrar do nosso menino Buda, do nosso guerreiro Davi, que dentre tantas coisas lindas que nos ensinou, nos ensinou também da força dos mantras na experiência do hospital.

Dr. José Luiz Setúbal

Dr. José Luiz Setúbal

(CRM-SP 42.740) Médico Pediatra formado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, com especialização na Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduação em Gestão na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pai de Bia, Gá e Olavo. Avô de Tomás, David e Benjamim.

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