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A potência do efêmero
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A potência do efêmero

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14/09/2017
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Esses dias, estava pensando em todo o caminho do Pronto Sorrir nos cinco anos de atuação artística em hospitais pediátricos de São Paulo, e encontrei esse relato que escrevi há mais de dois anos, refletindo sobre a atuação daquele mês no Hospital Infantil Sabará.

Muitas coisas amadureceram no nosso trabalho de lá para cá, mas percebo que muita coisa se manteve. A busca constante pelo lúdico; pelo espaço sincero da brincadeira mesmo em situações muito adversas; pela conexão com o lado ainda e sempre saudável da criança; pela oportunidade de construir novas narrativas para experiência dentro de um hospital.

Vou, então, compartilhar com vocês o relato, escrito em maio de 2015.  

A palavra que me vem à cabeça o tempo todo quando penso neste trabalho no hospital é: efêmero.

O dicionário diz que Efêmero é um termo de origem grega (em que “ephémeros” significa “apenas por um dia“) usado para designar uma situação que dura muito pouco tempo. É antônimo de duradouro, permanente. Em geral, o termo é associado a tudo aquilo que tem caráter passageirotransitóriofugaz, de curta duração, que é visto por apenas um momento. A efemeridade da vida é uma expressão muito usada para lembrar que a vida é passageira, e por isso, é imperioso que cada instante seja vivido intensamente.

No Hospital Infantil Sabará, o Pronto Sorrir por vezes realiza intervenções muito breves: três minutos de conversa com o pai de uma criança; 10 minutos de brincadeira num quarto da UTI; sete caretas malucas dentro de um elevador, uma dança de 20 segundos ao descer as escadas rolantes etc. Sinto que quase o tempo todo, durante este trabalho, estamos buscando encontrar o efêmero, dançar no efêmero, e – desapercebidamente – com a escuta do jogo, criar o efêmero…

E assim saio por aí pensado na potência que um momento efêmero pode nos proporcionar. O que três minutos de mágicas com bolhas de sabão podem afetar no dia de uma pessoa? Talvez nada. Talvez a alegria de brincar, a alegria de escolher acreditar. Talvez a oportunidade de poder ter uma novidade, um novo assunto para conversar em mais um dia de internação. Uma pitada de bagunça, um instante de gargalhada, de ludicidade, de poesia. Penso sempre na poesia. Neste brotar humano que lança para o mundo um grito criativo em meio a tanta dor. Aqui buscamos espaços para criar poesias. Como artistas, acreditamos que a criação também nos cura. Enquanto brincamos, criamos. Enquanto criamos, encontramos sentido na vida. Encontramos o prazer na existência.

Três dias antes de um menino lindo falecer, que aqui chamarei de Ulysses, o Senhor Incrível e a Alice no País das Maravilhas foram visitá-lo. Muitas coisas estavam em jogo naquele quarto, a compreensão da proximidade da morte estava clara nos olhos de todos, mas com o que escolher jogar quando se entra num quarto tão importante como esse? Todos que estavam dentro do quarto (mãe, Ulysses, Senhor Incrível e Alice), como num pacto silencioso de cumplicidade, resolveram brincar com a criança saudável, linda e criativa que havia ali, e também com a criança que existe em cada um de nós. Com o auxílio de uma canetinha, descobriram que o Ulysses é o melhor tatuador de todos os tempos. Ele tatuou desenhos no corpo da Alice e do Senhor Incrível, e também deixou a assinatura dos dois em seu corpo. A brincadeira, que nasceu de forma ingênua, abriu-se para um espaço metafórico, onde o Ulysses pode nos tatuar, e deixar sua marca para sempre em nossos corações.

Ainda, enquanto grupo e enquanto seres humanos, não sabemos lidar com a experiência da morte. Sempre que nos despedimos de uma criança no hospital, ficamos num silêncio vazio, onde não sabemos ao certo como desenvolver uma linguagem a respeito do que sentimos. Mas, ao mesmo tempo, a história do Uysses traz muita alegria para todos nós, em especial para o Bruno (Senhor Incrível) e para a Marisa (Alice no País das Maravilhas). Foi um instante mágico que a generosidade e disponibilidade do garoto proporcionou a todos aqueles que estavam com ele naquele quarto. No seu brincar e na sua alegria de viver, ele se despediu de todos nós nos dando de presente uma linda poesia vivida, presenciada, experienciada.

Vejo esta brecha para a entrada da poesia acontecendo em diversos espaços dentro do Sabará. Quando a psicóloga Andréia consegue trazer a visita do periquito azul para a “Penélope”, internada em estado grave, para dentro da UTI, abrimos espaço para existência do “fabuloso” dentro do Hospital. Quando fomos visitar a Penélope, depois da “grande visita do pássaro azul”, sua mãe nos contou da importância que aquela visita teve para a filha. Ela disse que quando a Penélope viu o seu amigo pássaro, ela chorou tanto, mas tanto, que a mãe achou que ela não havia gostado da visita. Mas depois, conversando com a filha, e ouvindo o quanto ela havia gostado, ela entendeu que aquele choro todo não era por causa do pássaro, mas a emoção de ver o pássaro abriu espaço para que a Penélope chorasse tudo o que ela não estava chorando por todo sofrimento que estava sentindo naquele momento. O seu amigo azul deu aval para que ela chorasse suas dores guardadas. 

Quando eu e o Senhor Incrível visitamos a Penélope pela primeira vez, ela ainda não havia recebido a visita do periquito e seu quarto estava cheio de gente. A Penélope estava quietinha deitada no sofá e não quis muito papo com a gente. Mas nós não desistimos, e resolvemos fazer a nossa mais nova cantoria da “bunda” para a família toda dela. Foi uma grande bagunça, cheia de gargalhadas, e até a vó da Sophia ao fim de tudo já estava cantando “bunda – bunda”… Em nenhum momento desta visita ganhamos um sorriso da Penélope, mas nós a entendemos, e aceitamos tudo. Ela nem sequer nos olhava nos olhos, mas em compensação, com o celular na mão, via pela câmera tudo o que estávamos aprontando. Na hora de sair mandamos um beijo para  a câmera, representando nosso beijo para Penélope. Saímos de lá sem a certeza do que aquela visita tinha significado para ela, mas pensamos que só dela ver sua família toda sorrir, talvez dentro dela algo tenha sorrido também. Depois de um tempo, ficamos sabendo pela Andréia que ela havia adorado a visita.

Quando a encontramos depois da visita do passarinho, ela nos recebeu de outra forma! Não sei se por coincidência ou não, mas agora ela nos olhava nos olhos e com muito esforço até tentava falar uma palavra ou outra. Demos a ela uma bexiga azul como seu pássaro, e como queríamos que esta bexiga também voasse. A Penélope abraçou a bexiga com as mãos e não deixou que a gente a pegasse por nada. Adoramos a vitalidade de sua imposição. Foi uma visita sem sorrisos e gargalhadas, mas cada dia mais aprendemos que não é sempre disso que se trata estes encontros. Se trata da honestidade e inteireza do encontro. Nem sempre super-heróis e fadas são capazes de fazer magias.

Nós sabemos que estas ações não mudam o momento delicado pelo qual esta família está passando. Mas ao menos buscam oferecer a ela um instante de ludicidade, um sopro na ferida para afugentar a dor.

Leia também: Um sopro na ferida para afugentar a dor

Atualizado em 1 de novembro de 2024

Dr. José Luiz Setúbal

Dr. José Luiz Setúbal

(CRM-SP 42.740) Médico Pediatra formado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, com especialização na Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduação em Gestão na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pai de Bia, Gá e Olavo. Avô de Tomás, David e Benjamim.

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mensagem enviada

  • Elen disse:

    Que texto lindo… Chorei ao ler mas, ao mesmo tempo me encheu de alegria por saber que existem pessoas que assim exercem suas profissões, com amor, entrega e sensibilidade! Não apenas passam por essa vida, mas marcam sua passagem por ela.
    Parabéns!

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