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No dia 29 de dezembro de 2022, Edson Arantes do Nascimento – o Rei Pelé – deixou de viver e entrou, de vez, para a eternidade. Como todo ser humano, tinha suas polêmicas, mas vou ficar nas lições deixadas por ele, principalmente em relação às crianças.
Pelé era Cidadão do Mundo. Para isso, bastava sair do Brasil e dizer, em qualquer lugar, que era brasileiro e logo se ouvia o nome dele. Em 1977, em solenidade na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, Edson Arantes do Nascimento recebeu o diploma de mérito de cidadão do mundo concedido pelo Unicef. Além dessa honraria, o Rei do Futebol carregou mais uma série de conquistas pessoais, e se tornou até ‘Sir’ – Cavaleiro do Império Britânico, condecorado pela Rainha Elizabeth, em 1997.
A primeira dessas mais de 40 honrarias pessoais recebidas pelo Rei do Futebol foi em 1963. Com apenas 23 anos de idade, Pelé virou ‘Cavaleiro da Legião de Honra da França’ pouco antes de ser bicampeão mundial de clubes pelo Santos. Antes disso, ele já havia vencido duas Copas do Mundo (1958 e 1962), além de mais sete títulos pela Seleção Brasileira e 24 conquistas pelo Santos Futebol Clube. Depois disso ainda viriam mais 22 pelo clube paulista e dois pela Seleção, inclusive a Copa do México, em 1970.
Por ocasião do seu milésimo gol, em 1969, talvez tenha pronunciado sua frase mais polêmica: “Ajudem as crianças desafortunadas, que necessitam do pouco de quem tem muito. Pelo amor de Deus, o povo brasileiro não pode perder mais crianças”. Chamou a atenção do Brasil e do mundo para o problema da infância no Brasil. Vinte anos depois, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1989.
Após 50 anos, ele voltou a falar sobre o assunto, baseado nos números do Unicef: a estimativa de 2018 é que existem 69 milhões de crianças e adolescentes entre zero e 19 anos no Brasil. A pesquisa aponta que há 9,4 milhões de crianças e adolescentes vivendo em situação domiciliar de extrema pobreza (renda per capita mensal inferior ou igual a um quarto de salário-mínimo) e 10,6 milhões em situação de pobreza (renda per capita mensal de mais de um quarto até meio salário-mínimo).
Segundo relatório do Unicef deste ano, 4 % dos brasileiros de 4 a 17 anos até frequentam a escola, mas são analfabetos ou têm em atraso escolar, estando em privação intermediária. E 6,5% estão fora da escola, em privação extrema. Isso significa que 2,8 milhões de crianças e adolescentes estão fora da escola no Brasil. Os dados aqui ilustrados dão uma ideia do quanto o discurso do Pelé em 1969 já era atual. E, até por isso, passados cinquenta anos, ele afirmou que repetiria:
“A mesma coisa. Infelizmente, estamos pedindo a mesma coisa. São novas crianças, mas temos de pedir a mesma coisa”, disse Pelé para a ESPN.
“Naquela época, eu mandei a mensagem para as crianças para a gente tomar conta. Cuidar das crianças. Mas foi uma coisa que não tem muita explicação. Eu acho que hoje, infelizmente, essas crianças já não existem mais. Já são adultos. E esses adultos eu tenho certeza de que estão tentando melhorar esse momento porque hoje é muito pior. Tem mais crianças, mais gente. Mas hoje as crianças são bem mais e posso dizer que muitos viraram bandidos. Hoje matam, roubam, assaltam em maior quantidade. É difícil dizer, mas eu continuo pedindo a Deus que, no futuro, a gente possa melhorar e ter mais tranquilidade no nosso Brasil”, completou.
Ele dedicou um tempo considerável na aposentadoria para apoiar a ONU e seu trabalho, tanto como Embaixador da Boa Vontade do Unicef, quanto como Campeão do Esporte da UNESCO, desde 1994. Pelé fez sua parte correndo o mundo como embaixador do Unicef e da Unesco, com projetos de esportes e educação para crianças e jovens. Uma das principais iniciativas de Pelé em prol da saúde das crianças foi o projeto “Futebol para la Paz”, que ele lançou em 1999 em parceria com a UNESCO. O objetivo era promover a paz e a tolerância entre as crianças de diferentes países por meio do futebol. Pelé trabalhou em iniciativas para melhorar a saúde e o bem-estar das crianças em todo o mundo.
Ele também foi nomeado Embaixador da Boa Vontade para a crucial Cúpula da Terra da ONU, no Rio de Janeiro, em 1992 (RIO-92), uma das primeiras grandes cúpulas globais de desenvolvimento e meio ambiente, dedicadas a um futuro mais sustentável para todos.
Em uma entrevista de 1991, os jornalistas perguntaram o que ele faria para ajudar a Amazônia. Pelé disse que era uma boa pergunta porque “95% dos brasileiros pensavam que a Rio 92 resolveria os problemas do Brasil na área do meio ambiente, mas que, na realidade, o evento não era sobre a Amazônia, mas sim sobre todas as pessoas no mundo.”
Mas o seu envolvimento com crianças não parou na mera dedicação do milésimo gol. Em 2005, o rei do futebol emprestou seu nome e imagem para apadrinhar o Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe – que tem como foco a pesquisa de doenças complexas da infância para prevenção, diagnóstico precoce e tratamentos mais assertivos.
Como última lição, Pelé se despediu em um quarto do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, cercado pela família. A foto da filha Kely Nascimento, com as mãos de familiares apoiadas às do Rei, simbolizam uma morte digna, respeitosa, amorosa.
Desde novembro, quando a quimioterapia foi suspensa e Pelé entrou em cuidados paliativos, a família parou de soltar boletins e passou a mostrar fotos respeitosas dos momentos familiares. Na véspera de Natal, a sedação foi aumentada. Pelé entrou no chamado “processo ativo de morte”, com disfunções orgânicas irreversíveis e o fim já era uma questão de horas ou de poucos dias, que terminou no dia 29.
Esse tempo dado pelo Rei deu ao mundo e aos seus fãs a chance de compreenderem que, para pacientes graves e sem chances de cura, podemos contar com aquilo que chamamos de cuidados paliativos. Medicamentos de última geração e outras tecnologias são fundamentais até um certo ponto. Quando deixam de ser úteis e só vão trazer sofrimento inútil, amor, carinho, aconchego e medidas de conforto são o que importam. E isso vale para o físico, para o psicológico e para o espiritual.
Cuidados paliativos não estão necessariamente ligados a terminalidade, mas à condição do paciente. Não deveria ser preciso esperar o fim da vida para ter acesso a essas medidas, mas de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cuidados paliativos devem ser prescritos desde o início do diagnóstico e envolver uma equipe multidisciplinar.
Pelé, assim como todos os homens, teve seus erros e acertos. Podemos gostar ou não, mas certamente sua passagem por aqui foi profícua e deixa o mundo um lugar melhor.
DESCANSE EM PAZ NOSSO REI E OBRIGADO PELA SUAS PREOCUPAÇÕES COM AS CRIANÇAS DO BRASIL E DO MUNDO.