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[ENTREVISTA] O tempero da vida – Mauro Fisberg
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[ENTREVISTA] O tempero da vida – Mauro Fisberg

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05/10/2022
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Confira abaixo a entrevista exclusiva do fundador e coordenador do CENDA do Instituto PENSI, Mauro Fisberg, para o livro: “O SABER PARA A SAÚDE INFANTIL – OS PRIMEIROS DEZ ANOS DO INSTITUTO PENSI”

Mauro queria ser psiquiatra. Entender a mente humana parecia ser o mais bacana da medicina. Mas isso foi no começo dos anos 1970, e o excesso de hospitalização dos pacientes, tão em voga na época, não lhe agradou. Preferiu a clínica geral, conhecer seu paciente por inteiro e no último ano acabou escolhendo pediatria. Então teve como tutor Benjamin Schmidt, o pediatra que implantou no Brasil o teste do pezinho, e se encantou com a área social, com o estudo do crescimento e desenvolvimento de crianças e adolescentes. Daí para entender o papel da nutrição foi um pulo.

Hoje pediatra e nutrólogo, Mauro Fisberg, fundador e coordenador do CENDA, coordenador do braço brasileiro do Estudio Latinoamericano de Nutrición y Salud (Elans), é um dos maiores nomes da América Latina em dificuldades alimentares dos pequenos. Já publicou quase 300 trabalhos, oito livros, vive no avião, convidado a dar palestras no Brasil e no mundo inteiro. Sua função é espalhar o modelo do CENDA e também cruzar dados e entender como ajudar crianças brasileiras, latino-americanas, pobres, ricas, de diversos pontos do atlas, que em algum momento da vida podem fechar a boca na hora de comer, por diversas razões.

Nos congressos, na TV, no consultório, ele repete o que parece óbvio para adultos, ainda mais neste momento, em que boa parte do mundo curte programas de receitas, reality shows, a comida sendo a estrela da cena: “Alimentação é prazer”. O que ele quer dizer é que para a criança não pode ser diferente. Ela tem de gostar do que está no prato. O pulo do gato é saber como conquistar o paladar dos pequenos, propondo novas preparações, para a refeição deixar de ser um tormento e se tornar uma alegria. Como deve ser a vida.

Um dos pontos que você sempre enfatiza é que a criança tem de ter prazer. Os pais não pensam nisso?
Mauro Fisberg — Não é que não pensam, mas as mães e pais se preocupam mais que a criança esteja ingerindo os nutrientes corretos. Mas não podemos esquecer que, ao contrário dos animais, ninguém come só por instinto, só porque tem fome. A gente busca sensações de bem-estar. E muitas vezes nem profissionais de saúde se lembram disso. É importante estimular o paladar e não piorar os problemas das crianças que já não querem comer.

Quais os principais problemas das crianças que chegam ao CENDA? Comer por excesso ou não querer comer?
Mauro Fisberg — A dificuldade alimentar é um problema que atinge metade das crianças. As dificuldades são várias: crianças seletivas, crianças com pânico de se alimentar porque tiveram, por exemplo, uma experiência traumática, foram alimentadas por sondas ou entubadas, crianças com alterações sensoriais, crianças forçadas a se alimentar ou castigadas. A obesidade é grande, mas o nosso maior volume de atendimentos é pela dificuldade alimentar. E tem a fome oculta (quando a criança não come, ou come e até engorda, mas tem deficiência de vitaminas e minerais). Um tempo atrás existia no Sabará o centro de excelência em obesidade, e gradativamente estamos encampando isso, com uma abordagem um pouco diferente. Acredito que teremos mais casos de obesidade, que é um problema crescente no Brasil e no mundo. Hoje 69% das pessoas (adultos e crianças) no Brasil já estão acima do peso.

Tem uma idade mais comum em que essa dificuldade surge? É grande o número de crianças seletivas?
Mauro Fisberg — A faixa pré-escolar, de dois a quatro anos. Porque normalmente a criança nessa fase passa a ter autonomia, livre demanda, o querer, o gostar, o não gostar. Isso extrapola a alimentação; a criança se interessa mais pelo meio ambiente, fica mais seletiva, tem mais vontade própria. Tem outras idades, claro, com problemas diferentes, mas essa é a mais comum. As dificuldades alimentares variam, mas quase toda criança em algum momento da vida vai apresentar algum tipo de problema na alimentação. Por isso criamos o CENDA.

Você diz que os pais têm muito mais angústia do que os filhos. Como é a relação com as famílias?
Mauro Fisberg — A gente acaba tendo um papel de consultório sentimental, diferente de outros atendimentos de pediatria. Primeiro, tem um envolvimento muito grande da família nas consultas: pai e mãe vêm juntos, às vezes avós e outros cuidadores também. Eles todos têm uma ansiedade muito grande. A criança está confortável, claro, se não for pressionada demais. Mas existem casos de divergências importantes entre pai e mãe sobre como devem alimentar os filhos — separações de casal acontecem por causa disso —, é o que a gente chama de diferentes estilos parentais. Fazemos a avaliação parental individual, que inclusive foi tema de uma tese de mestrado de uma aluna minha na Escola Paulista. É uma abordagem baseada também no pensamento da dra. Sheryl Hughes, da Baylor College of Medicine, no Texas, uma grande especialista em estilos parentais na alimentação. Então às vezes os pais precisam de terapia.

Além da qualidade, os pais sofrem também com a quantidade de comida, não? Quanto uma criança deve comer?
Mauro Fisberg — A quantidade vai variar conforme a criança. É algo muito pessoal, como é para você ou para mim. Cada um se sacia com uma quantidade diferente. Isso deve ser respeitado. A criança deve escolher quanto quer comer, mas os pais estabelecem o quê, adaptando as preparações se for preciso.

Uma das pesquisas mais importantes do CENDA mostrou que as crianças com seletividade alimentar não têm alterações significativas nos exames clínicos. Por quê?
Mauro Fisberg — Vimos que 30% das nossas crianças têm excesso de peso e mais de 90% não têm alteração nos exames. A gente sabe que a criança come mais do que os pais imaginam e pode ingerir nutrientes mesmo que eles não percebam. Há uma desproporção muito grande entre o que a mãe acha e o que a criança come. Fazemos aqui um inventário alimentar sobre quantas preparações de alimentos os filhos comem. Os pais declaram um número pequeno. Quando a gente checa com a criança, o número é quatro ou cinco vezes maior. Por exemplo: a mãe acha que se o filho não come arroz com feijão é porque não come nada, mas ele pode ingerir outras fontes igualmente proteicas. Essa foi a nossa pesquisa de maior impacto porque é contra o senso comum. Claro que a longo prazo a dificuldade alimentar é prejudicial e que existem doenças provocadas pela má alimentação, mas a maioria das crianças tem pouca alteração nutricional e poucas alterações bioquímicas, muito pouca anemia. Os exames mostram que estão no estado de normal para baixo.

Nas crianças, quais as doenças mais ligadas à alimentação?
Mauro Fisberg — Existem as doenças crônicas, problemas gastrointestinais, refluxo, alergia, esofagia, problemas respiratórios crônicos, problemas fonoaudiológicos. E algumas crianças com diabetes tipo 2 associada ao excesso de peso. Nesses casos a gente faz o diagnóstico e encaminha para o tratamento especializado.

Vocês atendem crianças de uma creche e filhos de funcionários do Hospital Sabará. Há diferenças entre os problemas alimentares de crianças por classe social?
Mauro Fisberg — Nesses grupos não há muita diferença, mas nas classes mais baixas há outros problemas, como por exemplo, na pandemia, muitas crianças que só se alimentavam na escola ficaram sem se alimentar. A obesidade é um traço comum entre as mais pobres e as mais ricas. A baixa qualidade nutricional também leva ao excesso de peso. Crianças obesas em idade escolar, entre as mais pobres, podem ter graus importantes de obesidade porque deixaram de ser atendidas pelo SUS e já estão com a saúde mais comprometida. Uma de nossas funções importantes é treinar o pediatra para o diagnóstico precoce, para que ele reconheça tanto a desnutrição quanto o excesso de peso.

O CENDA está participando, junto com o Elans, de um grande estudo que mapeia as dificuldades alimentares das crianças na América Latina. Quais são as maiores diferenças entre os problemas alimentares das crianças latino-americanas e os das brasileiras?
Mauro Fisberg — A alimentação é muito diferente de país para país, como é diferente nas regiões brasileiras. O CENDA participa do braço brasileiro desse estudo do Elans, que permitiu que a gente tivesse um diagnóstico de toda a situação da alimentação na América Latina: hábitos, padrões, costumes, perfil nutricional e a situação de doenças. Apesar das imensas diferenças, é possível ter uma ideia de padronização sobre como poder intervir e ajudar a população como um todo. É nisso que estamos trabalhando. Hoje estamos montando, junto com a Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, um protocolo conjunto sobre as dificuldades alimentares em toda a América Latina. Vamos fazer o mesmo com Portugal, Espanha, Israel, Alemanha e França.

O PENSI tem um trabalho muito importante em relação à insegurança alimentar. Poderia contar um pouco sobre isso
Mauro Fisberg — A insegurança alimentar é uma característica que depende do acesso à alimentação para a sobrevivência, especialmente para a manutenção da qualidade de vida das populações. No mundo todo, ela tem aumentado com as guerras e as crises econômicas, crises de refugiados, nas grandes mudanças de populações de um lado para outro. No Brasil temos os problemas de grande duração do nosso sistema econômico e também um agravo com a piora da economia nos últimos meses, e que foi pior ainda no período da pandemia. Há uma série muito grande de estudos que têm sido desenvolvidos no mundo para avaliar o impacto do isolamento, do lockdown, da modificação da dinâmica da população de baixa renda que se viu sem nada. As pessoas perderam renda, emprego, muita gente ficou doente, perdeu o arrimo de família; é uma crise bastante complexa. E o aspecto novo é o aumento da inflação, do transporte, da gasolina, e tudo isso leva ao aumento do custo da alimentação. Isso se reflete na dificuldade de acesso à carne, aos alimentos como verduras, frutas e legumes, especialmente para quem tem família grande. Esses alimentos não entram no dia a dia. A gente tem buscado trabalhar com o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA), onde fizemos eventos e um deles bastante importante, sobre insegurança alimentar e obesidade, para avaliar como a gente pode impedir o aumento do excesso de peso mesmo na população de baixa renda. Temos realizado fóruns de políticas públicas em saúde infantil, que o dr. José Luiz coordena (estamos no quarto), para discutir a insegurança alimentar. É preciso maior acesso da população aos serviços de saúde, de educação e alimentação. Temos de pensar em vigilância epidemiológica das condições de risco, fazer diagnóstico para avaliar o que a população está ingerindo, quais as suas carências. Como, por exemplo, as deficiências de ferro, cálcio, fibras, o excesso de gorduras, de açúcar e especialmente de sódio. São vários aspectos trabalhados em conjunto e também alguns trabalhos de pesquisa que o PENSI está desenvolvendo, que avaliam por geolocalização o acesso aos alimentos, a serviços de saúde, de acordo com a localização da população.

O trabalho do CENDA e do PENSI é facilitar ao máximo o acesso à informação. Explique por favor a importância da disseminação de conhecimento para professores e leigos.
Mauro Fisberg — É fundamental levar informação factível, viável, inteligível não apenas para profissionais de saúde, mas também para a população leiga. Estamos submetidos a uma enorme quantidade de fake news e precisamos de informações corretas, de qualidade, que não sejam enviesadas por aspectos inadequados da política ou da economia. Levar informação correta é parte essencial dos institutos de pesquisa e ensino como o PENSI. Principalmente nas áreas básicas, como alimentação, imunologia, vacinação, doenças crônicas e doenças raras.

Como vê o futuro do PENSI para os próximos dez anos?
Mauro Fisberg — Vejo primeiro um aumento das áreas de especialização, principalmente numa atuação mais integrada entre a área pública e a área privada, com atendimentos pelo SUS, com maior número de pesquisas integrando os laboratórios do próprio instituto, integrando também áreas externas e especialmente na área docente, com maior participação de estagiários, de alunos da pós-graduação, e a possibilidade de receber visitantes de todo o país e do exterior de uma forma mais adequada. Nestes próximos meses nós estamos montando um centro de educação em cozinha experimental para criação de receitas e projetos educativos e programas de demonstração prática de como trabalhar com as crianças. Isso não apenas para os pacientes, mas para formar novos profissionais. Estamos desenvolvendo o primeiro curso de formação de equipes multiprofissionais em outros países e existem mais países interessados. Estamos discutindo a abertura de um centro de atividade física e recreação que integraria diferentes profissionais, com profissionais de educação física, o que é bastante importante para a área pediátrica. Acredito que nos próximos dez anos haverá um número maior de profissionais trabalhando, sendo formados, e que existirá maior integração dos serviços assistenciais com pesquisas do próprio instituto e de outros países, um maior número de intercâmbios. E que o instituto será referência mundial dos problemas de nutrição específicos.

Nesses anos todos de atendimento das crianças com dificuldades alimentares, alguma história tocou você pessoalmente? Ou foi mais difícil?
Mauro Fisberg — São muitas histórias, e é muito recompensador ver as crianças superarem as dificuldades. A gente acompanha depois para ver a evolução. O que é sempre difícil é dar o diagnóstico de uma doença crônica, de um problema mais sério de saúde. Às vezes os pais vêm aqui com uma criança que tem algo mais grave, nós descobrimos isso no diagnóstico e encaminhamos para especialistas. E temos de contar para os pais. Nunca é fácil.

Por Rede Galápagos

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