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Em minha família, minha mãe, muito católica, assume o papel de tecelã: é ela quem tece laços e alinhava, com generosidade, os esgarçamentos cotidianos de nossa grande família: cuida de alguns irmãos e sobrinhos, faz a comida preferida, telefona, faz companhia em caso de hospitalização, reforma a casa de um, quita a dívida de outro, cuida das crianças de todos… Por esse mesmo motivo, seu grande e sincero coração tem bastante trabalho, o que a alegra e dá sentido a sua vida.
Outro dia, contudo, ela não podia atender um desses compromissos e pediu que eu preparasse uma refeição diferente para uma prima querida, hospitalizada em função de um câncer.
O pedido era aparentemente simples: ossobuco com mandioca. Entendi que era um caldo e estava tranquila: se ele de fato existe, encontrarei no Google. Procuro e se sucedem receitas espanholas elaboradas, nada com cara de recuperação hospitalar… Já eram 10h do sábado.
Ligo para a prima e não consigo falar no hospital. Bom, sigo para o mercado, decidida a inventar algo entre a receita de puchero e o caldo imaginado. 11h…
No mercado, tem exatamente 17 pessoas na minha frente na fila do açougue. Irritação. Pressa. Tento ligar para meu marido, se ele correr no açougue do bairro pode ser mais rápido. Celular sem um risquinho de sinal. Espero, não há alternativa. 11h20.
Não sou do tipo expansiva, mas adoro conversar com desconhecidos, entrar em seu universo único, cotidiano, pleno de riquezas nanométricas. Naquele dia, porém, já entre mal-humorada e ansiosa, foi a senhorinha na minha frente quem puxou conversa: adora aquele açougue, detesta vir aos sábados, mas não deixaria de comprar seu ossobuco!!! Para fazer uma sopa!!! Que a avó fazia quando ela era criança!!!!
Difícil descrever o que senti. Antes que ela continuasse – e ela parecia que não pararia nunca – contei sobre minha prima e minha missão naquela fila. Em compaixão com minha história, me deu a receita. 11h40. Compro todos os ingredientes e corro para casa: 12h.
Ainda com esperança, ligo para casa e peço para meu marido colocar a pressão no fogo. Cebola, alho, tomates, temperos e carne – tudo delicadamente escolhido e preparado: cada movimento banhado pelo secreto desejo de aliviar a dor…
15h50. O caldo chega para o jantar…
Bem, eu, que costumo pensar algo mais ou menos assim – “Quando se trata de amor, não há como dizer o quanto as pessoas são capazes de acreditar. Apesar de todas as provas de que a vida é descontínua, um vale de penhascos, e que o acaso representa um grande papel em nossos destinos, continuamos acreditando na continuidade das coisas, na causação e no significado” (Salman Rushdie, O chão que ela pisa, pg. 37). Não espero por milagres. Então, o que pensar desta experiência? Coincidência? Sincronicidade? Uma comunicação inconsciente? Destino? Uma lição?
Para cada um, sua resposta. De qualquer maneira, foi impossível não ser tocada por esta espécie de sentido misterioso, pela sensação de que estamos todos ligados, de que há algum sentido maior… Que caldo é este que nos liga?
Exatamente por concordar com os penhascos cotidianos, não encontro palavra melhor: milagre. Sem o peso teísta, impossível não maravilhar-se e seguir acreditando na imensidão da força transformadora dos encontros humanos.
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Atualizado em 22 de maio de 2024