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Resolvi escrever sobre crianças transgênero por duas razões, a primeira é que nesta semana vamos iniciar uma nova websérie que chama “Famílias que existem”, que abordará famílias não habituais em sua forma de organização. É mais uma iniciativa da nossa Fundação para combater o preconceito e trazer o tema da inclusão social da infância e juventude nos seus mais diversos matizes para a discussão da nossa sociedade nestes tempos de trevas nas cabeças das pessoas. O segundo motivo foi porque vi um post sobre esta história no Twitter da AAP e achei muito legal trazer de volta este tema que tenho trazido recorrentemente há pelo menos quatro anos neste espaço.
Em uma clínica de cuidados primários em Boston, uma jovem transexual negra que chamaremos de Nicole diz que só quer ser amada. Ela estava animadamente tentando namorar online. Seus olhos se iluminaram com a possibilidade de encontrar aceitação. Nicole e a sua pediatra tiveram uma longa discussão sobre amor e segurança, pois a transfobia coloca sua vida em perigo. Ambos viram as notícias e sabem quantas jovens mulheres negras trans são mortas a cada ano. Estamos falando de Boston uma das cidades mais desenvolvidas dos Estados Unidos, sede da Harvard e do M.I.T., e não do Brasil.
Um mês depois, Nicole foi parar no pronto-socorro por ideação suicida. O máximo que a residente pôde fazer naquele momento foi oferecer um rosto familiar, prestar cuidados afirmativos e enviar um e-mail ao seu médico de gênero. No departamento de emergência, cuidamos de inúmeras crianças transgênero, muitas das quais estão lá por causa de problemas de saúde mental. A maioria deles enfrentou bullying extremo por parte dos colegas e muitos sofreram rejeição dos pais ou da família. Eles vêm até nós porque sofrem de ansiedade e depressão, e muitos, como Nicole, são suicidas.
O sistema de saúde deve ser um espaço protegido para mantê-los seguros e saudáveis. E, no entanto, vimos pacientes com nomes equivocados ou sendo chamados pelo nome anterior, em vez dos adotados, por suas famílias e funcionários, incluindo alguns de nossos colegas médicos, o que contribui para as disparidades que sabemos existir para crianças e adultos trans.
As crianças transgênero crescem e se tornam estatísticas das vastas disparidades de saúde que assolam a comunidade trans. A reversão dessas proteções adiciona outra camada de discriminação às crianças trans, que apenas procuram ser elas mesmas autênticas. A bravura deles não deve ser recompensada com ódio de ninguém, muito menos dos médicos.
Devemos exercer nossa voz, poder e privilégio coletivos para promover a justiça em solidariedade com nossos pacientes trans. Alguns sistemas de saúde têm listas de médicos e clínicas compatíveis com LGBTQIA+ disponíveis publicamente. Embora importante, isso não atinge nossos pacientes mais vulneráveis. Essas listas são mais facilmente acessadas por pessoas com maiores níveis de conhecimento em saúde. Além disso, os cuidadores geralmente decidem sobre o médico de seu filho e alguns pais podem propositadamente não o selecionar para o filho transgênero ou questionador de gênero.
Muitos hospitais também têm bandeiras e sinais de orgulho e transgêneros como exposições de alianças. Mas o fruto do simbolismo, por si só, não pode criar raízes de justiça duradoura. Nossos pacientes transgênero precisam que façamos mais, especialmente após uma mudança de política que ameaça diretamente seu direito a cuidar. A hora de agir das instituições de saúde é agora.
A Academia Americana de Pediatria assim com a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que jovens que se identifiquem como transgênero e com diversos gêneros tenham acesso a cuidados de saúde abrangentes, que afirmam o gênero e são adequados ao desenvolvimento, fornecidos em um espaço clínico seguro e inclusivo.
Acreditamos que os pediatras devem seguir as etapas a seguir, e muito mais, para ajudar a garantir o melhor atendimento às crianças transgênero:
No Brasil, não existe uma legislação que regulamenta a retificação do prenome, sexo e imagem nos documentos pessoais. Dessa forma, os indivíduos precisam recorrer à justiça, ficando à mercê da burocracia, interpretações e exigências de cada juiz. A solicitação de laudos psiquiátricos e psicológicos é frequente. Algumas vezes, é exigido um novo laudo produzido por perito designado pela Justiça com objetivo de confirmar o diagnóstico. Embora não haja qualquer determinação de que o sujeito deva estar engajado no processo transexualizador, existe certa tradição no judiciário de conceder parecer favorável especialmente para aqueles que passaram pelo processo cirúrgico. Esse fato desconsidera certa parcela dos sujeitos com disforia de gênero que opta por não se submeter às intervenções médicas.
As crianças com disforia de gênero existem, não são pervertidas, são apenas diferentes e precisam serem entendidas como tal. Elas já sofrem o suficiente e não precisamos impor mais sofrimentos a elas. Vamos acolhê-las como sociedade e como instituições.
Saiba mais sobre o assunto:
Guia Prático de Atualização – Disforia de Gênero – SBP
Alto risco de transtornos mentais em crianças transgêneros
Identidade de gênero: tire todas as suas dúvidas sobre o assunto!
Crianças trans: especialistas falam sobre a disforia de gênero
Our Role in Advancing Affirming Care for Transgender Youth – American Academy of Pediatrics
mensagem enviada
Excelente sua matéria. Sou médica de crianças e adolescentes trans e é exatamente essas recomendações que fazemos aos pais, educadores e à sociedade em geral. Acima de tudo, respeito a essas pessoas q esperam poder ser quem de fato são. Betinha
EXCELENTE TEXTO!! Parabéns pelo seu posicionamento científico e humanitário doutor!